UM TIPO
INESQUECÍVEL
Em 1960, quando minha família se transferiu de Aquidauana
para Campo Grande, fomos morar na Rua Quinze de Novembro, bem em frente à casa
de Wilson Barbosa Martins. Era uma casa geminada, de um lado morava Raul de
Oliveira – irmão de Euclydes de Oliveira - e do outro lado a minha família. No
fundo das nossas casas havia muros que davam passagens para o resto do terreno,
que tinha uso comum, e que dava de fundo com o Cine Alhambra.
Lá havia duas enormes mangueiras que eram alvos das facas
atiradas pelo filho do vizinho, e pelo meu arco e flecha original bororó,
enorme. Havia também uma espécie de edícula, com duas salas quase sempre
fechadas, cheias de livros. Vez por outra vinha uma pessoa que ficava lá, algum
tempo, lendo ou arrumando os livros. Minha família sempre alertava para que eu
tivesse cuidados com o estranho, pois se tratava de um comunista, o que eu não
sabia bem do que se tratava. Foi esse o primeiro conhecimento que tive de
Euclydes de Oliveira.
Nascido em 1909, Euclydes tinha quatro anos de idade quando seu
pai foi assassinado numa tocaia. O crime nunca foi esclarecido, mas duas
hipóteses são levantadas – brigas por terra ou crime político, já que ele era
um líder destacado e Presidente da Câmara Municipal. A morte do chefe de
família deixou sua esposa e seis filhos em grandes dificuldades econômicas.
Euclydes estudava no Colégio Dom Bosco (Instituto Pestalozzi) quando se
submeteu a uma Banca Examinadora do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, uma
importante escola pública, assim pode continuar seus estudos. Paralelamente ao seu curso, preparou-se para
a Escola Militar.
Euclydes não queria ser general, escolhera a carreira militar
por razões econômicas, para poder sobreviver e continuar estudando. Aspirante
do Exército cursava paralelamente o curso de Engenharia na Escola Politécnica
que teve que interromper por conta da Revolução Constitucionalista de 1932. Em
1934 foi promovido a capitão. Lendo o Manifesto Comunista no quartel, começou a
achar que aquela era leitura que melhor explicava o mundo.
Em 1935 a política brasileira, estava dividida entre
integralistas, simpatizantes do nazi-fascismo e a Aliança Libertadora Nacional
(ALN), organizada pelo PCB, que pressionavam o governo Vargas. Euclydes se
filiou ao Partido Comunista nesse ano. Em final de dezembro estoura o levante
político-militar da ANL em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Euclydes se
encontrava em São Paulo, em trânsito para Campo Grande, aonde iria se casar,
quando foi preso, processado e expulso do Exército. O casamento do capitão
rebelde com Dona Nair Velasco só se deu em 1937, por procuração, ele
representado pelo irmão Amando de Oliveira.
O capitão cumpriu pena no Presídio da Rua Frei Caneca, no Rio
de Janeiro. Na solidão da prisão confortava-se com os chorinhos do seu violão.
Conviveu com vários líderes comunistas e também com o escritor Graciliano
Ramos, com o qual se atritou num episódio narrado no livro Memórias do Cárcere.
No inquérito a que foi submetido, por ter a maior patente, assumiu o papel de
transformar o seu julgamento em julgamento do regime, acusando o tribunal de
ilegal, como era a da orientação da Internacional Comunista.
Terminada a ditadura Vargas, em 1945, beneficiou-se de um
habeas corpus e fugiu, passando a viver clandestinamente em Goiás Velho onde
trabalhou como minerador e garimpeiro. Depois, com nome falso de Ovídio de
Carvalho, estabeleceu-se em Uberlândia com o Laboratório de Rádio Electra,
quando nasceram seus dois filhos, Ovídeo e Leonel.
Anistiado, em 1948 voltou para o Rio de Janeiro onde terminou
seu curso na Escola Nacional de Engenharia em 1951. Antes de formar-se, já
estagiava no famoso escritório Antônio Alves de Noronha, onde participou de
importantes projetos como o cálculo do Estádio do Maracanã. Por indicação de
Noronha, simpatizante do PCB, foi participar da construção da Base Naval de
Aratu (BA) e da Companhia Nacional de Álcalis em Cabo Frio. Por conta própria
foi para o Paraguai onde construiu o imponente Hotel Guarany, até hoje em
funcionamento.
Em 1963, Euclydes, um profissional já com grande experiência
profissional, resolveu voltar para a sua terra de Campo Grande onde estabeleceu
seu escritório de cálculo estrutural. No ano seguinte veio o golpe militar,
quando foi preso novamente. Só que dessa vez, além do violão, levou para o
cárcere sua prancheta de engenheiro, não atrasando prazos de nenhum dos
trabalhos que tinha contratado. O
ex-sargento Levy Dias que foi escrivão durante o seu inquérito policial militar
certa vez confidenciou que “Euclydes impressionava pela sua firmeza. Em nenhum
momento ele se entregava. Ele não baixava a cabeça. A postura dele era a de um
cidadão que estava no comando da situação. Ele estava preso, mas o comando da
situação era dele”. Nosso companheiro Onofre da Costa Lima, sempre dizia sobre
Euclydes: “esse foi um autêntico bolchevique”.
Como engenheiro do Departamento de Obras Públicas trabalhou
na construção do Estádio Morenão, durante o governo de Pedro Pedrossian, de
quem se tornou o principal conselheiro na questão das obras pública, como
também aconteceu na gestão de Levy Dias na Prefeitura de Campo Grande, e na de
Wilson Martins no Governo do Estado.
Fui ter o primeiro contato com Dr. Euclydes quando, formado
engenheiro, vim para trabalhar em Campo Grande em 1972. Enquanto esperava minha
contratação na Universidade, estagiei no seu escritório por algumas semanas.
Nos anos 1980
trabalhei com Dr. Euclydes na Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Campo
Grande, ele presidente e eu secretário. Depois mais dois mandatos no Conselho
Fiscal. No total foram oito anos de trabalho na entidade. Naquela época de
restrições às liberdades essas entidades eram espaços de militância política.
Continuando na sua trajetória de cidadania, Dr. Euclydes ainda presidiu o CREA
e a Santa Casa, importantes instituições da sociedade civil.
Com a legalização do
Partido Comunista Brasileiro, em 1985, os comunistas vieram à luz tendo na
direção figuras ilustres e admiradas entre elas o nosso engenheiro. Precisando apresentar-se à sociedade, o
partido optou pelo lançamento de uma candidatura própria para a prefeitura de
Campo Grande. Dois nomes foram buscados pelo Partido: Euclydes de Oliveira,
prefeito e eu como vice-prefeito. Foi uma campanha memorável, com toda a
militância se envolvendo na divulgação da nossa sigla e das nossas propostas. O
Partidão era legal, divulgava nossos discursos e nossa propaganda.
Nosso programa de
governo era muito competente e sério, inspirados em duas administrações
municipais consideradas exemplares na época: a de Piracicaba (SP) e de Lages
(SC). Liderados por Euclydes demos um banho na televisão. Todos reconheciam no
PCB o melhor programa, as melhores propostas e o melhor candidato. Para os três
minutos de televisão, usávamos todo um dia de trabalho. No fim da tarde,
chegava ele todo jovial e entusiasmado, perguntando “cadê a dália”? Era assim
que chamávamos nosso teleprompter improvisado com um rolo estreito de
cartolina. Aí ele virava um ator seguro e todo cheio de sabedorias. Ficamos
longe da vitória, mas afinal essa não era nossa missão.
Sua atividade eleitoral prolongou-se até a eleição de 1988
com sua candidatura a vereador, para ajudar o partido a cumprir a exigência de
coeficiente eleitoral. Esse era o fôlego desse capitão, engenheiro e comunista,
a essa altura, com 79 anos. Morreu em 10 de junho de 1998, com 89 anos idade,
exatamente na data do aniversário do assassinato do seu pai. Parte da vida de
Euclydes foi narrada no livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. No
filme, aquele capitão briguento que se encrencara com o escritor, foi representado
pelo ator Fábio Barreto. Nós, seus amigos e companheiros, brincávamos com ele,
dizíamos que, para nós, um artista para representa-lo tinha, no mínimo, que vir
de Hollywood. Na sua face, discretamente, surgia um sorriso de vaidade.
FAUSTO MATTO GROSSO
*Muitas informações usadas neste texto foram retiradas de um
material escrito sobre Euclydes de Oliveira pelos professores Marisa Bittar e
Amarílio Ferreira Junior, para o Arquivo Municipal de Campo Grande.
2 comentários:
Impressionante como prende a gente na leitura. Muito agradável, foi muito interessante ver parte da história do Dr. Euclides de Oliveira.
Excelente texto sobre nossa história e memória.
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