terça-feira, 24 de novembro de 2020

 (um livro escrito pagina por página)

QUANTO VALE A TUA FAZENDA?

 


  O ano de 1982 teve grande importância para a legalização do PCB. No início do ano havia sido lançada a convocação para o “Encontro Nacional pela Legalização do PCB”, nome que encobria a realização do VIIº Congresso do partido.

  A partir dos primeiros meses foram sendo realizados eventos municipais e estaduais, com discussões das teses congressuais e escolha de delegados para as instâncias superiores.

  Havia 16 anos que o partido não realizava congressos dada a situação de perseguição e clandestinidade. Com isso vários conflitos internos estavam represados. O partido estava dividido em três correntes básicas, a prestista, que acabou não comparecendo ao congresso, o que significou o afastamento definitivo de Prestes da organização; a tendência leninista, liderada pelo secretário geral Giocondo Dias e a tendência eurocomunista liderada por Armênio Guedes e David Capristano inspirada nas teorias de Antônio Gramsci.

O VIIº Congresso seria o âmbito para essa disputa. Era, portando, um evento muito esperado. Mas, em 13 de dezembro de 1982 a Polícia Federal, comandada pelo delegado Romeu Tuma, invadiu o recinto da Editora Novos Rumos / Jornal Voz da Unidade, em São Paulo, onde se realizava o evento semiclandestino, impedindo a sua realização.          Foram presos 47 delegados 42 funcionários e dois garçons. Foi aberto inquéritos contra 40 pessoas, enquadrando-as na Lei de Segurança Nacional.

Entres os delegados, Mato Grosso do Sul tinha seu representante, o advogado Onofre da Costa Lima Filho. Estava presente também Expedito Rocha, (nome de guerra Tibúrcio) dirigente, do Comitê Central, que estava escondido na região de São Gabriel do Oeste (MS) plantando café.

Ainda no recinto do encontro, o tenente-aviador Dinarco Reis, que lutara na Guerra Civil Espanhola e na Resistencia Francesa (condecorado com a Legião de Honra da França), ao ser perguntado sobre de quem era uma pasta cheia de documentos encontrada no local, gritou: se tiver dinheiro é minha!

No momento da invasão do recinto, Tibúrcio que estava no banheiro, não percebeu nada de anormal. Quando lhe encostaram uma arma nas costas teria reagido instintivamente e desarmado o policial, invertendo a situação.

Ainda na fase da identificação no inquérito, nosso camarada Onofre foi inquirido sobre o que fazia na vida, ao que respondeu que era advogado e pecuarista. Diante da resposta inusitada o policial perguntou quanto ele ganhava como advogado, dito os valores, o policial perguntou como ele, com aqueles rendimentos estava metido com o comunismo. Onofre reagiu invertendo a pergunta, dizendo que era ele que estranhava que o policial com seu soldo pouco estar metido com o capitalismo. Depois o escrivão perguntou quanto valia a sua fazenda. Dada a resposta, Onofre olhou por cima dos seus ombros do escrivão e ironizou: “estão faltando três zeros”. Onofre, no processo, teve como testemunha de defesa o poderoso Senador Saldanha Derzi.

Ser comunista às vezes não era fácil, mas a vida nos reserva alguns momentos de divertidas situações.

Fausto Matto Grosso




sexta-feira, 20 de novembro de 2020

 

REVENDO O FUTURO





  Na semana passada andei lendo diversos artigos e análises de cenários para 2022. Quase tudo que se escreveu terá que ser reescrito.  Costuma-se dizer que as eleições municipais pouco dizem sobre a política nacional, que existe autonomia entre elas. Mas 2020 foi diferente, no conjunto dos resultados tivemos um verdadeiro tsunami político.

  Antes, grande parte dos cenaristas colocava como incertezas- críticas a situação de Bolsonaro e do PT e faziam hipóteses de fortalecido e enfraquecido, para cada um desses protagonistas. Acontece que esses atores saíram quase descartados como polos de aglutinação de forças. Deixaram de ser polarizadores.

  Bolsonaro anunciara que não apoiaria nenhum candidato. Isso poderia ter sido feito, principalmente porque era um presidente sem partido. Mas, acabou se metendo com candidatos fracos, derrotados ou prestes a sê-lo. Saiu menor do que entrou. O Centrão tornou-se maior do que ele.

Considerando o número de prefeituras conquistadas, saíram fortalecidos partidos tradicionais de direita e centro-direita como MDB - embora em tendência de queda - PP, PSD, DEM, PL, todos com expressivos crescimentos. O protagonismo que tinha Bolsonaro pode se transferir para esse bloco, com destaque para o DEM, em processo de expressiva recuperação, vencedor em três das seis capitais que encerraram a eleição em primeiro turno: Salvador, Florianópolis e Curitiba. Também disputa com favoritismo no segundo turno do Rio de Janeiro. Além disso, o DEM preside a Câmara dos Deputados e o Senado e é umas das opções de filiação de Luciano Huck.

Já na esquerda e centro-esquerda, reina a divisão. O PT, que era a sua coluna vertebral, acumula derrotas desde 2016. Na sociedade foi duramente atingido pelos escândalos de corrupção e na dinâmica das relações com outros partidos do seu campo, foi vítima do seu próprio hegemonismo. Esse partido tem dificuldade de aceitar parceiros, apenas apoiadores. É ilustrativo disso o seu conflito com Ciro Gomes em 2016.  O seus tradicionais aliados tem buscado voo próprio como o PSB, o PCdoB e o PDT, mas todos saíram enfraquecidos na última eleição, saíram menores do que entraram.

No campo da esquerda, apareceu como novidade o PSOL, surgido como uma dissidência de esquerda do PT em 2004, por discordância com a linha do partido. Nesta eleição o PSOL destacou-se ao levar Guilherme Boulos para o segundo turno em São Paulo.

PSOL e Cidadania, na esquerda, foram os únicos partidos que cresceram em 2020.

O primeiro pode repetir a trajetória do PT, mas parte de uma posição ainda muito débil nacionalmente. Boulos pode repetir Lula, mas ainda precisará de tempo para ampliar sua musculatura partidária. Na eleição de São Paulo, o PSOL mostrou um discurso mais moderado, o que lhe abre perspectiva mais promissora.

O Cidadania, sucedâneo do PCB e do PPS, tem avançado na perspectiva de articulação com os movimento cívicos, tendo incorporado várias lideranças desses, com ajuda de Luciano Huck. Podem vir daí inovações na estrutura dos partidos com repercussões no arranjo partidário brasileiro.

Em síntese, o projeto Bolsonaro foi derrotado fragorosamente e o Partido dos Trabalhadores deixou de ser um polo dinâmico de esquerda brasileira. Os cenários de 2022 precisam ser reescritos.

Fausto Matto Grosso

Engenheiro e Professor aposentado da UFMS

 

 

 


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

 (um livro escrito pagina por página)

O GINECOLOGISTA VERMELHO


 O PCB, em Mato Grosso do Sul, ainda na ilegalidade, tinha uma forte inserção nas camadas médias. Nele militaram expressivas lideranças de diversos segmentos profissionais, como médicos, advogados, engenheiros, professores, profissionais de saúde pública, entre outros. Normalmente eram profissionais que após cursarem universidades em outros estados, para cá voltavam já engajados na luta política de esquerda. 

Na ilegalidade, havia também uma rede de simpatizantes da qual pouco se sabia. Ninguém sabia exatamente onde terminava o partido e onde começavam a franja de apoiadores.  Escutava-se o canto do grilo, mas não se sabia exatamente quem era e onde ele estava. Muitos desses quadros e simpatizantes, pelo sucesso profissional durante o milagre brasileiro, acabaram virando fazendeiros, a ponto de nossos detratores, querendo nos amesquinhar diziam que PCB significava partido dos criadores de bois.

Nossa vinda para legalidade, em 1985, onde os nomes foram dados aos bois, foi um momento de grande impacto na sociedade local. Da nossa primeira direção estadual legal participavam pessoas com o cirurgião Alberto Neder, o engenheiro Euclydes de Oliveira militante desde 1935, os advogados Onofre da Costa Lima Filho, Carmelino Rezende, a pecuarista Yonne Orro (depois substituída pelo criminalista  Renê Siufi, para que ela pusesse dirigir o partido em Aquidauna), o arquiteto douradense Luiz Carlos Ribeiro, os professores Amarilio Ferreira Jr. e Paulo Roberto Cimó, a liderança do movimento de favelas Paulo Sudório. Na Câmara tínhamos dois vereadores, eleitos através do PMDB, eu e Marcelo Barbosa Martins, de ilustre sobrenome político. Foi uma grande surpresa para muitos.

  Na direção municipal de Campo Grande, tínhamos nomes de destaque como o desembargador recém-aposentado Athayde Neri de Freitas (recém aposentado), e os médicos Alan Pithan e  Lúcio Bulhões, entre outros.

  Já nos primeiros dias da legalidade, recebi um telefonema de uma aluna, de tradicional família campo-grandense, que muito tinha me ajudado na campanha de vereador. Perguntou-me se eu era comunista de verdade, e que queria ouvir disso de minha própria boca. Diante da minha afirmativa, ela disse que ia ter que refletir sobre o assunto de comunismo com mais atenção. Pouco horas depois voltou a telefonar querendo saber se Marcelo Barbosa Martins era também comunista. Agora ela estava enrascada pois havia pedido voto para ele na família, super-direitista, para o “Marcelinho”, e que jamais ia ser perdoada por isso. Tarde da noite ela me retornou, perguntando a respeito do Paulo Correa da Costa, confirmada a resposta ela não teve como se conter e exclamou, “Putz! até o meu ginecologista era do Partidão e eu nem desconfiava”.

Fausto Matto Grosso


sábado, 14 de novembro de 2020

(um livro escrito página a página)

O INCRÍVEL EXÉRCITO DE BRANCALEONE



 

Na Itália do século 11, o maltrapilho Brancaleone forma um exército de mortos de fome e parte em direção a terras a que julga ter direito. Percorrendo a Europa medieval em um pangaré, ele se depara com a peste negra, com bruxas e bárbaros.

Muitos séculos depois, no final dos anos de 1960, um grupo de irrequietos jovens universitários se encontra nas férias em Campo Grande, com as cabeças cheias de ideias. O Brasil vivia os “anos de chumbo”, o cheiro de pólvora estava no ar. Para muitos, a luta armada parecia ser o caminho para derrotar a ditadura.

Plagiando Gullar, éramos apenas 5, tínhamos sede de justiça e estávamos dispostos a lutar por ela. Os primos Alberto e Ronaldo, estudantes de Medicina, o espírita Aymoré, o engenheirando Joaquim, e este que vos fala, aquidauanense de coração e botafoguense nas horas vagas.

Tínhamos que estar preparados, afinal a convocação poderia vir a qualquer momento.

Resolvemos fazer um treino de caminhada longa. Imediatamente Aquidauana veio à mente. A cerca de 150 km de distância, em 3 dias estaríamos lá. A voz da prudência apontou que deveríamos antes, fazer um treinamento do treinamento e acabamos adotando um trecho mais curto, de cerca de 30 km para que atingíssemos a fazendinha dos avós de um dos aventureiros, na saída para Dourados.

 Em termos de marchas e acampamentos, as mochilas e as barracas ainda não estavam na moda e o jeito foi improvisar. Com nossas sacolas amarradas com cintos e correias, nos viraríamos. Não tínhamos também calçados adaptados para caminhadas, mas essa era uma questão menor. O maior problema de logística era a barraca. Conseguimos uma com um parente, daquelas de pescarias. Ela era sustentada, no centro, por um poste de aço fundido, superpesado. Todas as maneiras de carregar o poste da barraca foram tentadas. Com os cinco, com quatro, com três, com dois, por um de arrasto, um grande aprendizado.

Eu, com o encargo de cozinheiro, levei a melhor receita de carreteiro. Adicionalmente, foram providenciados suplementos alimentícios como leite em pó, chocolate e goiabada, afinal não existiam por aqui aquelas latas de feijão, como no velho oeste.

Se não me engana a memória, tínhamos também soro antiofídico. Mas o Alberto era alérgico a essa droga, de forma que a marcha só foi desinterditado pela sua mãe, após o compromisso de fazer toda a caminhada calçando botas de canos longos. Lembrava um lorde inglês caçando raposas. O resultado foi que lá pela altura do Cemitério Santo Antônio ele já estava com insuportáveis bolhas nos pés e teve que marchar direto, quase sem descanso.

Saímos pela madrugada, ainda encontrando alguns amigos, saindo das festas, a nos gozar pela estranheza da trupe.

O primeiro obstáculo a superar foi o posto da Polícia Federal. Logramos êxito após algumas justificativas mentirosas.

Caminhávamos 50 minutos e interrompíamos por 10 para descanso. Era tempo para a recuperação da diferença de distancia do Alberto. Fomos impiedosos com ele. Desprezamos o ensinamento de camaradagem do Che, de que a marcha de uma coluna deve ter a velocidade do combatente mais fraco.

Marchamos até a fome apertar nossas barrigas. Daí entrei em ação, para cozinhar nosso carreteiro. Com alguns gravetos (verdes e úmidos) fizemos o fogo, o que causou uma fumaceira infernal. De tempo em tempo eu abria a caçarola para ver se já estava pronto o carreteiro. Resultado, tivemos que jogar fora todo a comida, pelo intragável gosto de fumaça e, ainda em começo de viagem, tivemos que repartir o estoque de estratégico, o chocolate, o leite em pó e a goiabada.

Na boquinha da noite chegamos à fazendinha. Montamos a barraca perto de um alagado. Foi quando surgiu a primeira fraqueza pequeno-burguesa. Poderíamos usar a piscina ou não? A casa da fazenda, nem pensar. Acabamos amenizando nosso cansaço e calor na piscina até chegarem as estrelas.

Voltamos para a barraca, nosso segundo percalço. A barraca tinha sido tomada por uma fila de imensas formigas que inutilizaram nossos alimentos. Eram prováveis agentes da reação. Veio então segunda concessão pequeno-burguesa, acabamos aprovando, por unanimidade, que íamos utilizar a casa da fazenda. O Alberto ardia em febre, com os pés rachados e super-inflamados.

Ficamos mais um dia, refestelados na piscina e comendo manga. Até que tivemos que dar um recuo tático e chamarmos sua família. Foi a terceira derrota pequeno-burguesa. 

Voltamos para casa de caminhonete, derrotados temporariamente, mas ninguém pode dizer que não tentamos.

Fausto Matto Grosso

 

sábado, 7 de novembro de 2020

 

(um livro escrito página a página)

O COLÉGIO NOSSA SENHORA AUXILIADORA E A CLANDESTINIDADE


As filhas da Imaculada Conceição, instituição centenária mantenedora do tradicional Colégio Nossa Senhora Auxiliadora já teve seu tempo de clandestinidade. Durante a unificação italiana (1815 e 1870), um tempo de extremo anticlericalismo, era perseguida junto com a extrema-esquerda, maçons carbonários, jacobinos, republicanos e democráticos. O trabalho das filhas da Imaculada com as meninas, liderada pela madre Maria Mazzarello, acabou confluindo com o trabalho de Dom Bosco, com meninos, na Congregação Salesiana.

O Partido Comunista (PCB), agora Cidadania, prestes a completar 100 anos (2022) também conheceu a clandestinidade por anos a fio. Em 1974 sofreu a mais dura repressão, o que obrigou a sua direção a se refugiar no exterior. Nesse período, a “assistência política” da direção estadual do partido passou a ser prestada pela direção partidária do estado de São Paulo.

Certa vez, lá nos meados da década de 1970, precisávamos de um local para uma reunião muito reservada e segura com esses dirigentes e assistentes. Esgotadas as minhas possibilidades, o camarada Onofre falou que eu deixasse o assunto com ele. Poucas horas depois me ligou, para meu assombro, dizendo que o Colégio Auxiliadora estava à disposição.

  Muito do respeito e da capacidade de articulação gozados pelo Partidão era devida à política de procurarmos nos manter sempre como “peixe n’água” como insistia o camarada Onofre. Estarmos integrados no meio. Também nos ajudava o fato de contarmos com profissionais respeitados, médicos, advogados, engenheiros, professores, etc.; bem vistos na sociedade. O Onofre era um deles, advogado do Rachidão à Missão Salesiana, nesta o seu principal contato era o ecônomo, que cuidava das finanças dos salesianos. Sempre conversavam sobre política, pois seu irmão era filiado ao Partido Comunista Italiano. Assim foi resolvida a questão do local seguro e insuspeito.

O Auxiliadora era um colégio respeitado, onde se educava a fina flor das moças das “boas famílias”. Lá se cultivava a ciência, mas também os valores cristãos.

Cabia a mim, como secretário de Organização, operacionalizar a reunião. Perguntei se deveria conversar com a Madre Superiora, o que foi considerado desnecessário. Mesmo assim, por estilo, lá compareci. Falei para a madre que queria dar-lhe informações mínimas sobre a natureza da reunião. Ela me cortou, dizendo que não precisava saber de nada, pois se o ecônomo autorizou não precisava mais informações. Só queria saber o horário para servir o cafezinho.

Assim no dia seguinte, ordenadamente, usando todas as portas, foram chegando os comunas. Tivemos um dia produtivo de trabalho e um almoço delicioso. Lição que aprendi, você pode estar mal com todos os outros, menos com o ecônomo. Benza Deus.

Fausto Matto Grosso

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

(um livro escrito página a página)

PEDROSSIAN E O PARTIDÃO


Na eleição de governadores em 1965 Pedrossian (PSD) disputou e venceu Lúdio Coelho (UDN). Em todo o Brasil, venceram dois candidatos de oposição, o próprio Pedrossian em Mato Grosso e Negrão de Lima no antigo Estado da Guanabara.

  Na ocasião, foi formado um comitê de apoio ao candidato da oposição, com participação de profissionais liberais, principalmente advogados, muitos dos quais acabaram presos. Entre eles, estava Onofre da Costa Lima Filho, do Partidão. Embora não conste do livro de memórias do governador eleito na ocasião, esse foi o primeiro contato eleitoral dos comunistas com Pedro, ao que eu saiba. Essa derrota da ditadura ajudou a promulgação do Ato Institucional nº 2, que extinguiu os partidos tradicionais, substituindo-os por Arena e MDB. Pedrossian acabou sendo cooptado pelo regime e seguiu sua carreira política de sucesso.

Indiretamente, através da primeira dama, vez por outra, Pedro mantinha contatos reservados com nosso camarada Onofre, principalmente quando estava fora do poder. Sempre indicava querer nosso apoio. A esse apelo, sempre respondíamos que no partido da ditadura isso não seria viável, o que poderia mudar se ele mudasse de partido, por exemplo, filiando-se ao PDT.

Pessoalmente, participei de duas tentativas de sedução. Certa vez, quando eu era Pró-reitor de Extensão, o Reitor foi chamado para uma reunião na governadoria, com a recomendação que me levasse junto. Pois bem, encontramos na sala de espera o Prefeito Juvêncio e o Miro, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil. Ninguém sabia do assunto.

Fomos então introduzidos na sala de reunião. Para nós foi uma surpresa, a sala estava lotada pela imprensa mobilizada pela Coordenação de Comunicação Social. Nessa ocasião o Governador anunciou o lançamento de um Plano de Desfavelamento da Capital. Ao prefeito caberia doar os terrenos, à Universidade organizar os estudantes de Engenharia para assistência técnica e ao Sindicato, organizar trabalhadores para mutirão de construção das casas.

  Terminada a reunião, foi liberada a participação da imprensa. A Cogecom foi direta em cima de mim. Descartei a entrevista falando que quem falava pela Universidade era o Reitor. O governador me observava e disse: “Matto Grosso, você ainda vai falar bem de mim na televisão”.

Certa vez, o CREA resolveu escrever um material sobre o camarada Euclydes de Oliveira. Não podia fugir dessa tarefa, arranjei uns professores para a elaboração do texto e assumi a responsabilidade de facilitar entrevistas, entre as quais, com Pedrossian que tinha relacionamento pessoal e profissional com Euclydes.

Alguns meses depois, fui procurado por alguns jornalistas, que pediram a gravação de uma fala minha sobre o Governador. O que eu achava dele. Era a cobrança da dívida. Segundo me garantiram, o material seria usado para um vídeo-documentário destinado à memória familiar. Falei com sinceridade e o elogiei como sendo único governador estadista que o estado conhecera.

Noutra ocasião, amigos comuns, articularam uma reunião privada, a pedido do Governador. Autorizado pela direção do Partido, lá fui eu para o tête-à-tête. Pedrossian queria uma aproximação com o Partidão. Seu argumento principal era o de que ele era a única liderança anti-oligárquica do estado, e que nós estávamos equivocado quanto aos Barbosas Martins, representantes da “elite”.

O governador disse que queria a minha presença no governo, porque ele liderava a mudança progressista. Dizia, “quero você nesta sala, onde se discute o futuro do estado”. Dizia que o rame-rame da política, com políticos, deputados, senadores e prefeitos eram tratado no térreo pelo vice-governador. O primeiro andar era o lugar das decisões que mudariam o estado. Na ocasião, exímio sedutor, ele relatou que na primeira reunião do secretariado, ele colocara em cima da mesa um caixa de chocolates e anunciara que o primeiro que levasse a ele uma boa ideia receberia um bombom. Reclamou que até aquele momento a caixa de chocolate estava ainda embrulhada em celofane

Na verdade, essa conversa, não prosperou cada um foi cuidar da sua vida. O Partidão continuou na oposição e nunca o chamou de “Dr. Pedro”, como faziam os chegados.

Passado algum tempo, veio a eleição de Ciro Gomes (PPS, PDT e PTB), de cuja coordenação eu fazia parte. Veio então nova convocação. Fui ao seu apartamento para receber o apoio ao Ciro. Propiciei o primeiro contato entre eles. No seu material de campanha passou a constar a citação do nosso candidato, inclusive nos seus enormes out-doors.

  Nada como um dia após o outro e a paciência política.

Fausto Matto Grosso

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

 

CÂMARAS MUNICIPAIS REPUBLICANAS


Há um sentimento generalizado de decepção em relação aos vereadores. Em muitas cidades, plenários de Câmaras Municipais chegaram a ser invadidos pela população que clamava pela diminuição do número deles, de suas remunerações e dos percentuais de repasses financeiros destinados aos legislativos.

Entretanto, em uma democracia desenvolvida, os legislativos são mais importantes do que os executivos, especialmente nos municípios. Naturalmente não estou falado desse parlamento em crise, mas sim da necessidade de sua reinvenção. Neste ano serão realizadas eleições municipais, o que esperar da nova safra de vereadores, o que cobrar deles?

Muitas são as questões a serem enfrentadas. A crise clama por uma radical inovação nos legislativos municipais. Há um déficit de representatividade, um déficit de afirmação da autonomia e prerrogativas, e um déficit de qualidade do processo legislativo.

A distância entre a sociedade política e a sociedade civil é imensa. Na exacerbação do individualismo, que marca os tempos atuais, os parlamentares, no geral, representam as suas próprias vaidades ou projetos pessoais e não as opiniões existentes na sociedade. De um lado a política virou profissão, do outro a sociedade não se organiza para cobrar mudanças.

A palavra vereador é afim de dois termos do latim: verear e vereda. Verear é andar pela cidade, e vereda significa caminho. O papel do vereador é conhecer a cidade e traçar o seu rumo. Não existe função mais importante do que essa. Entretanto, vereador, normalmente faz campanha como se fosse prefeito e depois não cuida da essência da função de verear, fazer e aprovar leis e fiscalizar a administração municipal. Promete o que não pode entregar ou acaba entregando sua autonomia ao executivo, muitas vezes em troca de favores ou nomeações para atender a sua “clientela”.

É necessária a transformação das câmaras municipais em caixa de ressonância da sociedade, em lugar de encontro da democracia participativa com a representação, da “democracia de contato”. Sim, porque, ao contrário do senso comum, em sociedades complexas, onde as questões não podem ser resolvidas apenas em decisões simplórias do tipo “sim ou não”, o parlamento deve ser o local para a construção democrática de consensos ampliados, em torno de interesses legítimos da sociedade. As câmaras municipais devem ser os locais de construção de projetos de futuro das cidades, compartilhados com a cidadania, para se obter um mínimo de coesão social e uma governabilidade baseada em valores éticos, cívicos e republicanos.

Fortalecida pela representatividade, a Câmara pode afirmar a sua independência em relação ao Executivo, rompendo com a tradição de executivos que fazem leis, subvertendo a lógica natural, e de vereadores alinhados segundo os pobres critérios de serem “bases” ou serem oposição, que aviltam o papel dos vereadores.

Há ainda o déficit de qualificação da ação legislativa. Há que se ter também um mínimo de profissionalização das assessorias nas câmaras municipais. As assessorias parlamentares não podem ser apenas o exército de reserva de cabos eleitorais para as próximas eleições. Fiscalizar o Executivo não é tarefa trivial, não é apenas fiscalizar a legalidade dos atos, exige informação precisa sobre o andamento e resultados dos programas e projetos executados pela administração, com base em indicadores, estudos e pesquisas. Para isso, mediante concurso público, a Câmara deve montar assessorias técnicas competentes, talvez, até remanejando cargos de assessorias individuais dos vereadores para viabilizá-las.

Tais inovações são utópicas diriam alguns. Sei disso, mas respondo associando Bilac a Galeano: “Ora (direis) ouvir estrelas. [...], perdestes o senso! [...] eu vos direi que muitas vezes desperto [...] abro a janela, [...] e vejo [...] a Via-Láctea”. É verdade, adoro utopias. A gente dá um passo e elas se afastam um passo, mas têm exatamente esse papel de nos ajudar a caminhar no rumo certo.

 

Fausto Matto Grosso,

Engenheiro civil.

Professor aposentado da UFMS

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

 

(Um livro escrito página a página)

AINDA QUER RECEBER!


  Meu primeiro período como professor da UFMS (1972-1974) foi muito gratificante. Ao final de 1974 fui demitido da Universidade por razões políticas, mas isso é outra história. Recém-criado, o curso de Engenharia atraiu uma demanda reprimida, de tal sorte que, com meus 23 anos de idade, era praticamente da geração de meus alunos. Fiz muitas amizades.

  Tive excelentes alunos, alguns pouco nem tanto. Fui um professor muito rigoroso, afinal minha escolha tinha sido uma opção política. Para mim, ser professor era uma espécie de sublimação da política. Entrei na condição de professor querendo modificar o que tinha achado inadequado na minha própria formação. Meu plano de ensino era ambicioso e os índices de reprovação, em Resistência dos Materiais (Mecânica dos corpos deformáveis), eram altíssimos, como costuma ser em todos os cursos de Engenharia. Eu era muito exigente, afinal, nessa área, eu tinha sido aluno professores brilhantes. Pois bem, tive um aluno muito inteligente, mas que não gostava de estudar. Comigo isso não dava certo, sai melhor o aluno estudioso. Foi reprovado e prometeu me atropelar de carro. Fazia parte.

  Após minha demissão, acabei caindo de cabeça no cálculo estrutural. Naqueles anos oitenta de crise econômica profunda, meus maiores clientes eram o Governo do Estado e os bancos, ou seja, onde havia dinheiro. Com a divisão de Mato Grosso, de novo, Pedro Pedrossian, assumiu o governo. Era o tocador de obras. Advinhem quem assumiu o Departamento de Obras Públicas? Exatamente, aquele que queria me matar.

  Mas a sorte me protegeu. Só existiam aqui dois escritórios de cálculo estrutural que tinham porte para aguentar o ritmo de Pedrossian, o meu e o de outro comunista, o Euclides de Oliveira, uma figura notável.  Em 1935 era capitão do exército, e tinha participado do levante comunista, quando ficou preso com Graciliano Ramos, conforme descrito no livro Memória do Cárcere. Aliás, comunista gosta de sofrer, por isso gosta de ser calculista.

  Não tendo jeito, o governo tinha que me passar projetos. Muitos projetos! O duro era receber.

  Certa vez fui cobrar minhas faturas. Meu ex-aluno inteligente olhou para mim e disse: “Fausto, você é comunista, vive falando mal do governo, nós te damos serviço e você ainda quer receber!!!!”

  Consegui fazer o governador ficar sabendo. Ele chamou o diretor, aliás, seu parente, e o enquadrou: “você não devia ter dado projeto para ele, mas se deu, trate de pagar”. Assim consegui me salvar, embora muitos dos meus créditos, protegidos pela URV, tenham ficado para o governo seguinte pagar.

Fausto Matto Grosso

 

(Um livro escrito página a página)

ATAQUE AO FORTE APACHE

O ano era 1968, quando Carmelino Rezende, estudante de direito no Rio de Janeiro, chegou a Campo Grande com uma mala cheia de spray para pixar palavras de ordem alusivas ao 30º Congresso da UNE, que seria realizado em Ibiúna.

Combinamos que a pichação deveria envolver lideranças estudantis locais e passamos a articular, principalmente com estudantes de medicina como os goianos Jajá e o Neder.

Eis que fomos surpreendidos com a pichação da casa do Comandante da 9ª Região Militar, localizada na esquina da Rua Pedro Celestino, com a Avenida Afonso Pena. Era um local improvável, pois era vigiado 24 horas por dia, por sentinelas armadas.

Fora atacado o coração do poder militar. Naqueles tempos os comandantes militares eram uma espécie de vice-reis, que decidiam sobre tudo no Estado. Bajulados pelas lideranças políticas locais, decidiam sobre todas as questões relevantes. Dizíamos que arbitravam até brigas de marido e mulher. Logo vieram as suspeitas. Carmelino achava que era eu e reciprocamente.    A Polícia Federal, que vigiava nossas atividades resolveu investigar o estudante Silvio Pettengil Filho, que aparecera nacionalmente em uma foto discursando em cima de uma mesa no restaurante estudantil da UnB, o estudante de Economia Valfrido Medeiros Chaves que recentemente aparecera com destaque, no Rio de Janeiro e eu.

Fomos intimados para um depoimento. Passamos por instantes de tensão e medo. A situação pior foi a do Silvio Petengill, cujo pai, por confusão do nome, acabou passando por horas de castigo na sala de espera da PF. Quanto a mim, estava mais tranquilo. Lowton maçônico (sobrinho, protegido), meu pai maçom foi avisado na véspera, de que nada aconteceria comigo. Por sorte, o Superintendente da PF era o General Amadeu Anastácio, uma liderança maçônica. Passamos um dia de castigo nas dependências do Polícia Federal.

Muitos anos depois fiquei sabendo que a proeza fora realizada pelo pessoal do Partidão – o Professor Itamar Barreira, os sapateiros Romeu Gama do Carmo e Fortunato Moreira e o carroceiro Acelino Granja. Alguns passaram de carro pela Avenida pela Avenida Afonso Pena, chamaram os sentinelas para pedir informações, enquanto outros pixavam “30º Congresso da UNE” no muro da Rua Pedro Celestino. O Forte Apache acabara sendo pixado. Puro sangue frio.

Fausto Matto Grosso


domingo, 1 de novembro de 2020

 

(Construindo um livro escrito página a página)
O FESTÃO, O COSMONAUTA E O CALDO DE PIRANHA*.

Era da tradição dos partidos comunistas manterem jornais oficiais. De certa forma essas publicações tinham o papel de centro organizador de sua militância e ajudavam a organizar um entorno de simpatizantes. O PCUS tinha o vetusto Pravda, na França L'Humanité, na Itália o L’Unitá fundado por Gramsci, o Partido Comunista Português mantém até hoje a Festa do Avante.

Aqui no Brasil, o PCB manteve, entre março de 1980 e junho de 1991, o jornal Voz da Unidade. Entre os editores e diretores alinhavam intelectuais e jornalistas como Armênio Guedes, Marco Aurélio Nogueira, Gildo Marçal Brandão, Martin Cezar Feijó, Luiz Carlos Azedo, Alon Fuerwerker e José Paulo Netto. Também realizava anualmente o Festão da Voz, um evento que juntava a militância provinda de todas as regiões do país, bem como representações internacionais, de um grande número de países. Grandes shows musicais, artesanato, artes plástica, faziam parte da programação, para a qual, uma das vezes levamos o Grupo Acaba, de Campo Grande. Os bonecos da Conceição dos Bugres tinham destaque na nossa barraca.

Mato Grosso do Sul sempre comparecia e em todas as festas e montava a sua barraca, com o tradicional caldo de piranhas. Cartazes anunciando o efeito miraculoso da iguaria eram postados em todos os cantos do evento. Um desses eventos ocorreu logo após um dos Jogos Olímpicos. Para São Paulo deslocou-se toda a delegação premiada de ginastas e bailarinos. Além desses, delegações vietnamitas, chinesa, americana e de inúmeros outros partidos pelo mundo afora.

De nossa parte, fazíamos o melhor possível, mas numa dessas ocasiões, na hora de preparar a viagem, não encontramos piranha para comprar, o jeito foi comprar pacú, mantendo a propaganda que atraía a todos.

O triste era que os estrangeiros exigiam tirar fotos com as vorazes e perigosas piranhas. Não tinha jeito, os estrangeiros levaram fotos pessoais segurando aqueles espécimes enormes. Se estiveram presentes espiões científicos, devem estar até hoje tentando entender o tamanho das nossas piranhas.

Eu e minha mulher, nessa ocasião, ficamos no hotel onde foram alojadas as delegações internacionais, o Hotel Cambridge.  Nosso quarto ficava próximo ao quarto do cosmonauta, condecoradíssimo herói soviético. Um vexame. A noite inteira ele ficou correndo atrás das interpretes e recepcionistas, auto sugerido pelas virtudes do nosso caldo de ...piranha!

  Ficou mostrado assim, que o vetusto e temido Exército Vermelho, fundado por Trotski, tinha um flanco vulnerável.

  O último Festão, por volta de 1981, foi impedido pela polícia. Alguns de nós tínhamos ido de avião, com antecedência, e avisamos do cancelamento, antes que os ônibus partissem de Campo Grande. Foi um prejuízo enorme, todo o material comprado ficou encalhado, debaixo de críticas da nossa Secretaria de Finanças, que passou a chamar os bugrinhos da Conceição de “bibelôs” Pouco tempo depois, mandamos esse material para a festa do L’Humanité. Foi um sucesso. Recebemos até uma correspondência oficial de agradecimento do Partido Comunista Francês.

Fausto Mato Grosso

* Versão ajustada após sugestões de José Antônio Segatto e Regis Fratti