segunda-feira, 28 de junho de 2021

 

LEMBRANÇAS DA LUTA SINDICAL

João José de Souza Leite

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguém iria contar)



Éramos uns poucos e o sentimento do mundo, como diria Drummond. José Rodrigues dos Santos, negro das Minas Gerais, fugira de casa quando criança e nunca mais voltou. Inventou seu nome, sobrenome e idade e colocou na sua tardia certidão de nascimento.  Meteu-se na vida sindical através do Partido, foi parar na primeira direção da CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Tinha verdadeiro pavor de jagunço. Traiçoeiro e ruim, falava. Quando ficava brabo dizia que fulano de tal merecia uma surra com relho de umbigo de boi. Chegou a Campo Grande, vindo do Paraná e fundou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Gostava de dar festas no Sindicato chamando mulheres e crianças, aquela alegria! Tinha muitas namoradas. Sua contabilidade sindical era uma confusão. Dava úlceras na direção partidária. Que também lhe dava úlceras.

Jovelino Teodoro dos Santos, da construção civil, idoso, tinha grandíssima antipatia pelo esquerdismo, nunca se esquecia de quando foi para Dourados organizar a resistência ao Regime de 64, fizeram uma reunião clandestina no meio do mato para recebe um bam-bam-bam dirigente partidário que começou a ler um calhamaço analisando a situação política nacional e internacional e antes do meio da reunião mais da metade de seus participantes já estavam dormindo profundamente. Caiu fora. Veio para Campo Grande cuidar da mulher e dois filhos, comprou um lote na Vila Jockey Clube e construiu sua moradia. Foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário. Quando uma situação estava muito esculhambada dava seu veredito: uma casa de puta comandada por viado. Risos. Hoje a reação dos ouvintes seria outra. Coisas da época

Antônio Benjamin Fontoura Corrêa da Costa, de família tradicional mato-grossense. Na Enersul organizou a fundação do Sindicato dos Eletricitários. Foi mandado embora. Uma luta para registrar a papelada na Delegacia Regional do Trabalho e obter o registro sindical. Luta maior ainda para obter na Justiça do Trabalho seu retorno. Ficou muito tempo sem salário. Sofreu. Mas se esquecia com frequência das reuniões. Que eram feitas às escondidas, pensava esse time. Santa ignorância!

Celso Pereira da Silva volta e meia me telefonava e se comunicava por códigos secretos: o jovem Lino, o beija as cobras, etc., para tratar dos nossos assuntos.  Reuniões para quê? Prá avaliar as lutas nos sindicatos e não deixar transbordá-las de seus objetivos, luta por melhores salários, se transformasse uma correia de transmissão de partido político.

Como se vê nossa divergência com o PT é antiga. Éramos assim, normais, mais ou menos, comemorávamos o dia das mães, dos pais, das crianças, nos benzíamos passando por um cemitério e ligadíssimos na política. Nossa militância sindical foi se definhando à medida que a política se transformava: vieram as eleições para governador, campanha das diretas, campanha da Constituinte, finalmente a redemocratização.


 

 

POR DETRÁS DAS LEIS

Carmelino Rezende

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguém iria contar)

 


           Houve um tempo, durante o período da Ditadura, em que os órgãos de repressão passaram a privilegiar a informação à repressão pura e simples.  Mais importante do que prender passou a ser saber o que os “inimigos” estão fazendo.

           Foi graças a essa mudança “civilizatória” da repressão que me livrei de uma bela enrascada.

           Meu primeiro endereço como advogado, em Campo Grande, foi na rua 13 de maio, entre a Av  Afonso Pena e a Barão do Rio Branco.  Passados uns anos, bem em frente, estabeleceu-se a Direção da Polícia Federal.

           Frequentava o escritório meu amigo fraterno, colega de faculdade, Aleixo Paraguassu, recém empossado Juiz de Direito.  Antes de aqui chegar, ele havia sido Delegado de Polícia em Brasília e, estudioso que sempre foi, tinha sido lá professor na Escola Nacional de Polícia.

           Logo, muitos dos policiais da Federal o reconheceram, reatando antigo relacionamento da época da Escola.   Sempre juntos, passei também a dividir as conversas com os amigos de meu amigo.

           Passado algum tempo, um dos policiais, que se dizia estudante de Direito, pediu para frequentar o escritório, como estagiário.  Volta e meia pedia algum livro emprestado, discutia um tema qualquer e assim se tornou pessoa presente em nosso cafezinho.

           Naquela época, de dura repressão, o jornal do Partido era o “VOZ OPERÁRIA”, impresso e distribuído clandestinamente, com poucos exemplares, em cada órgão estadual, que o repassava aos militantes de mão em mão, até que o último o incinerava.    Quem fosse pego com a V.O. na mão, estava dispensado de interrogatório...

           Um belo dia, recebi a V.O. do mês.  Enquanto me preparava para passá-la adiante, escondi o exemplar na biblioteca do Escritório, na estante da coleção de leis editadas pela “LEX”, com  uns 100 volumes.

           Chegando de repente da rua, a Secretária me informou que o amigo da Polícia estava na minha sala, procurando um livro.  Abri a porta e me deparei com o “cara da Federal” com a mão em cima da estante da “LEX”, bem próximo de onde estava escondido o “tesouro”.

           Não sei quem se assustou mais, se ele ou eu, mas ambos mantivemos a serenidade, com uma desconversa qualquer.  Logo ele se desinteressou pela pesquisa da Lei que procurava e atravessou a rua.

           Até hoje não sei se o “cara da Federal”, apiedado com a franqueza do trato que sempre teve, quis apenas dar um aviso, até porque o volume ficou fora do alinhamento, ou, se, de fato, não chegou ao “tesouro”.

           Uma coisa, porém, mudou muito depois disso. O estagiário raleou suas visitas e sua presença no cafezinho não foi mais tão frequente, até que desapareceu.   E o meu amigo Juiz percebeu também que sua amizade com seus antigos alunos foi se esfriando, até mesmo com indiretas sobre o embaraço de se ter certas amizades inconvenientes. 

           O fato é que, depois do susto, por muito tempo nossa “base” de advogados não se reuniu mais no escritório, nem a V.O. foi entregue nesse endereço.   Mas, como na vida tudo passa, com o enfraquecimento do regime, com a campanha da anistia, das diretas, e com as primeiras eleições, aquele “aparelho” virou comitê de vários desses movimentos e até mesmo a Polícia Federal acabou mudando-se para sua nova sede, onde está até hoje.

Carmelino Rezende

 

GILBERTO GIL, MORENINHO E O FOGO

Mário César Ferreira (Cecéu)

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguém iria contar)




Já abordado neste livro, retomo aqui o tema das finanças do PCB no Mato Grosso do Sul. Ter recursos financeiros para a ação política do partido sempre foi essencial, estratégico. De fato, cuidar das finanças era atribuição específica de poucos na divisão do trabalho partidário. Assumiam a tarefa os camaradas que gostavam ou aqueles (raros) que tinham afinidade com o métier. Tínhamos certa consciência de que para vencer o “capital” precisávamos (e muito) de capital. Do vil metal.

O final da década de 1970 e início da década de 1980 no Brasil é marcado por fatos importantes no cenário efervescente da luta política pela redemocratização do país. O congresso de reconstrução da UNE (1979), a reforma partidária (1979), a lei da anistia (1979), as importantes greves dos metalúrgicos no ABC paulista (1979), a 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora – CONCLAT (1981) e a criação da CUT (1983) são alguns dos acontecimentos que turbinam o fim da ditadura civil-empresarial-militar que imperou por 21 anos no Brasil.

É neste ambiente social e político que em Mato Grosso do Sul o partido empreende iniciativas de reorganização do movimento sindical no estado, principalmente em Campo Grande onde ele era mais organizado. O PCB havia conquistado a hegemonia na direção do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de Campo Grande no início dos anos de 1980, também contribuído na fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Grande e atuava fortemente para ganhar espaço político sindical entre os trabalhadores da Enersul (empresa de energia elétrica privatizada em 1997) e os bancários de Campo Grande (estes sob forte influência do PT).

Para alavancar o trabalho sindical do PCB no MS, o partido decide adquirir um carro para dar suporte ao trabalho de reorganização sindical dos camaradas que atuavam nesta trincheira política. Neste contexto, resolvemos integrantes do partido no movimento estudantil (FUCMT e UFMS), propor uma atividade cultural de vulto em Campo Grande: a realização de um show do consagradíssimo Gilberto Gil. Fiz parte do time dos camaradas que organizaram e promoveram em abril de 1981 esse evento no Ginásio Moreninho da UFMS. Escolha e definição do local feitas com a valiosa ajuda dos nossos estudantes do PCB na UFMS.

Fizemos intensa divulgação do evento na cidade. Ao buscar o Gilberto Gil no aeroporto conseguimos algo politicamente muito importante para o PCB e as forças progressistas. Ele concordou em visitar o Comitê de Defesa do Pantanal e subscrever o abaixo assinado contra a instalação de usina de álcool (e vinhoto) na região de Bodoquena no MS. Ao final de uma passeata com cerca de 15 mil participantes, o abaixo-assinado foi entregue na Assembleia Legislativa do MS com cerca de 100 mil assinaturas. Marcante vitória política que certamente contribuiu decisivamente para a não instalação da propalada usina naquele momento histórico.

O show do Gil foi sucesso total. O ginásio Moreninho ficou lotado. Vendemos também muitas camisetas e cartazes que estampavam conteúdo político de esquerda (ex. mais vale um passo com mil que mil passos com um). Gil havia lançado o álbum “Luar” (1981) e abriu o show cantando a música Palco:

Subo nesse palco, minha alma cheira a talco

Como bumbum de bebê, de bebê

Minha aura clara, só quem é clarividente pode ver

Pode ver

A galera, majoritariamente de estudantes, veio abaixo, cantando junto.

Ficamos eufóricos com o sucesso da empreitada. Grana garantida para o partido. Graças a este trabalho o partido conseguiu comprar um fusquinha 1500 de cor amarela para o suporte do trabalho sindical dos camaradas. Missão cumprida.

Mas, nem tudo foi alegria. No dia seguinte, na vistoria de entrega do ginásio Moreninho ao gestor veio a desagradável surpresa. O piso perto do palco onde Gil cantou belas músicas estava com cerca de meio metro queimado. Os exaltados participantes que lá estavam fizeram pequena fogueira; não percebida na hora do show. Felizmente por razões que a memória agora não ajuda lembrar, não foi necessário ressarcir o locador. Desde esse evento, a UFMS proibiu a realização de shows no ginásio Moreninho. Nossos camaradas estudantes da UFMS ficaram em “saias justas” pela micro depredação que, infelizmente, escapou nossa governabilidade.

Após o show, o evento repercutiu muito durante a semana na FUCMT entre os estudantes mais próximos e simpatizantes do partido. Em uma roda de conversa, um simpatizante falou: “Que sucesso foi o show! É verdade que o Gil está querendo entrar para o PCB?”. Respondi de pronto: “Sim. Ele está pensando seriamente nisto.” Anos depois, em 1988, Gil se filiava ao PMDB e se elegia vereador em Salvador com 11.111 votos.


sexta-feira, 25 de junho de 2021


O TRATORAÇO


Durante as campanhas eleitorais, “nossos representantes” costumam dizer que “vão trazer dinheiro de Brasília”. Eleitos, grande parte deles joga quase toda a sua energia para a encarniçada batalha pelas emendas, se precisar, vendem a alma ao diabo. Através dessas emendas é que se estabelece um jogo espúrio e imoral do cabresteamento dos votos dos parlamentares pelo Executivo. 

Emendas parlamentares deformam as prioridades e fragmentam as políticas públicas, reforçam o clientelismo de eleitores e instituições, bem como são brechas para os mais espúrios casos de corrupção. Durante a execução, as emendas têm “donos” e, segundo a praxe, estes ficam com o direito de cobrar “pedágio” para que esse dinheiro chegue até a obra, equipamentos ou serviços indicados.  A prática da emenda parlamentar tem sido um dos recantos mais escuros e malcheirosos da política. Esse é o reino do baixo clero, a Sapucaí da política brasileira, já exposta em inúmeros escândalos no Congresso.

Atualmente, as emendas ao orçamento são de quatro tipos: individual, de bancada, de comissão e do relator. Todas são de execução obrigatória. As emendas individuais são reservadas a cada deputado ou senador, neste ano é de R$ 8 milhões, distribuídas de forma igualitária entre os parlamentares da situação ou da oposição. As emendas de bancada são coletivas, de autoria das bancadas estaduais ou regionais. Também são coletivas as emendas apresentadas pelas comissões técnicas da Câmara e do Senado.

Já as emendas do relator (também conhecidas no jargão burocrático pelo código RP9) são feitas pelo relator do Orçamento. Em 2021, o relator-geral do Orçamento foi o senador Marcio Bittar (MDB-AC).

  As emendas de relator, em princípio de pequeno valor, serviriam para ajustes técnicos do orçamento, como a destinação de recursos para alguma área que precisa ser melhor contemplada ou para cumprimento de mínimos legais, etc. Ao longo do tempo sua dotação foi aumentando assustadoramente. Neste ano o relator pleiteava R$ 26 bilhões, inclusive avançando sobre recursos de despesas obrigatórias como Previdência, seguro-desemprego e abono salarial.     Mas foi contido e ao final esse valor foi reduzido a cerca de R$ 16 bilhões. É desse montante que saíram os R$ 3 bilhões de reais para distribuição secreta, entre os apoiadores do governo. Sendo classificadas como emendas técnicas do relator, o nome dos deputados ou senadores fica oculto, ninguém sabe nem o nome do parlamentar, nem o valor recebido, ficando tal montante protegido dos órgãos de controle. Para liberação desses recursos, bastava um simples oficio do parlamentar ao ministro.

  As emendas do relator estão concentradas no Ministério de Desenvolvimento Regional, que é o lugar onde estão alocados, os recursos para obras de pavimentação, calçadas, rede de abastecimento de água, esgotamento sanitário, contenção de encostas - todas elas iniciativas de grande apreço dos deputados e senadores, porque isso gera votos. Também os parlamentares pediram pavimentação de estradas, compra de tratores, pás carregadeiras, roçadeiras, caminhões, escavadeiras, usinas de asfalto. Segundo o Estadão muitos preços estão superfaturados, tendo o governo chegado a liberar R$ 359 mil para compra de um trator, cujo custo normal seria de até R$ 100 mil.

Bolsonaro, que prometera acabar com o toma lá da cá, é politicamente beneficiário desse jogo político do orçamento paralelo, também apelidado de tratoraço, ou bolsa deputado, uma imitação do mensalão para comprar apoio dos deputados e senadores. A inovação foi esconder essas emendas. O orçamento paralelo foi montado por ocasião da eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, de grande interesse para o Governo. Essa escandalosa operação está sendo questionada no Supremo, por ação do PSB e do Cidadania, bem como foi aberta uma investigação pelo subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU. É importante acompanhar os desdobramentos dessas iniciativas.

 

FAUSTO MATTO GROSSO,

Engenheiro e professor aposentado da UFMS


sexta-feira, 11 de junho de 2021

 

O PARTIDO MILITAR



Cientistas políticos do Observatório da Defesa e Soberania consideram a existência, no Brasil, de um Partido Militar, que se formou durante a Ditadura, quando ocupava diretamente o Governo. Ao entregarem o poder aos civis, os militares procuraram outras formas de articulação para atuar na esfera política, mantendo e ampliando o seu poder. O principal objetivo desse Partido são as reivindicações gerais da corporação numa lógica sindical. Quando analisamos o Governo Bolsonaro, isso faz muito sentido.

Não se trata de um partido que busque a oficialização como uma legenda registrada no Tribunal Superior Eleitoral, isso não lhes interessa, pois seria uma limitação aos seus objetivos. Mas têm um programa e uma direção centralizada na alta oficialidade. Disputam eleições e formam articuladas bancadas. A própria eleição de uma chapa presidencial composta por um capitão e um general dá a medida do poder político desse Partido Militar.

Paralelamente a isso, os cientistas apontam também a existência de um Partido Fardado formado no âmbito das polícias militares, com as mesmas características. Ambos os partidos se aliançam na atuação política. O poder desses partidos é mensurado pelo número de cargos que ocupam na administração pública e pelas conquistas que oferecem às suas corporações.

No governo Bolsonaro a principal cidadela ocupada pelos militares foi a Casa Civil, centro nevrálgico da ação política no governo. Também são dirigidas pelos militares a Secretaria de Governo, a Secretaria de Assuntos Estratégicos, a Secretaria Geral da Presidência, o Gabinete Pessoal da Presidência e o Gabinete de Segurança Institucional, ou seja, aqueles que constituem o círculo mais próximo ao Presidente. Segundo a Casa Civil são 341 militares comissionados nesses órgãos.

Os militares estão também presentes em numerosos postos de direção ou em conselhos de administração de algumas das maiores empresas estatais do país, como Petrobras, Eletrobrás, Itaipu Binacional, Telebrás, Correios e Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. A distribuição de cargos se faz sem nenhum critério técnico, o que tem levado o Governo a desastres administrativos, como no Ministério da Saúde e da Educação.

Segundo o estudo Militarização da Administração Pública no Brasil, do cientista político William Nozaki, são mais de seis mil militares, da ativa e da reserva, a ocuparem funções civis no governo. Nesse sentido, nada mais parecido com o governo Hugo Chaves/Maduro, do que o Governo Bolsonaro.

Nunca a presença militar no governo foi tão grande quanto atualmente, nem no regime militar. As Forças Armadas sempre foram canais de ascensão das camadas mais baixas da sociedade. Agora passaram a serem também, canais de acesso ao poder político, e aos cargos públicos, em todos os níveis. Nas eleições de 2020, segundo o estudo de Nozaki, concorreram 6755 candidatos militares.

Com o poder acumulado, inclusive pela chantagem representada pela posse das armas, os militares passaram a contar com um sistema de proteção trabalhista, social e previdenciário privilegiado, diferenciado em relação ao que tem acesso a maioria dos cidadãos brasileiros. Os privilégios que já tinham foram mantidos e ampliados nas reformas previdenciária e trabalhista. E já está garantido que sairão sem arranhões na Reforma Administrativa que pretende desmontar o serviço público.

Os privilégios recebidos contribuem para colocar os militares em defesa do bolsonarismo, também por uma razão fisiológica de manutenção das “boquinhas”, pelas quais vendem a alma ao diabo, como no Fausto de Goethe.

Essa forte presença militar no governo pode atingir negativamente a imagem institucional das Forças Armadas. O caso Pazuello é dos mais emblemáticos na desmistificação da suposta aura de competência política, intelectual e administrativa dos militares. Isso é muito ruim para o Brasil.

FAUSTO MATTO GROSSO,

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

domingo, 6 de junho de 2021

 

IVAN LINS

(Esta crônica vai ser publicada no livro Histórias que ninguém iria contar)



    No tempo do Partidão não existia o Fundo Partidário como hoje e tínhamos que nos virar com as magras contribuições individuais dos militantes e simpatizantes ou de campanhas eventuais. Eis porque nossos secretários de finanças tinha que ser duros na guarda dos parcos recursos. Nesse aspecto, ficou famoso o Ascário Nantes, nosso mais longevo tesoureiro. Ficou com a injusta fama de mão de vaca.

  Na campanha eleitoral de 1982, lançamos dois candidatos a vereador: Marcelo Martins e Fausto Matto Grosso. A juventude do Partido assumiu a campanha do primeiro. No seu esforço de criatividade resolveu promover um show com o cantor Ivan Lins. Embora no início da sua carreira, o cantor já fazia grande sucesso nacional. Para levar o evento à prática precisava um capital inicial, ou seja, enfrentar o Secretário de Finança, tarefa reconhecidamente difícil.

  Formada uma comissão de jovens, estes se dirigiram ao encarregado de finanças, apresentando o projeto: um show na quadra da UCE, que poderia alavancar a finança de campanha. Nantes foi duro na negociação: quem é esse Ivan Lins, nunca ouvi falar. Diante da insistência dos jovens, perguntou qual a musica conhecida do cantor. Na linha de frente da comissão assumiu uma jovem companheira respondendo que a música mais famosa era Madalena. Nantes retorquiu: não conheço, canta um pedaço da musica. Não tendo saída a jovem, envergonhadamente,  começou a cantar “Oh Ma! Oh Madá! Oh Madalê Lê Lê Lê Lê Lena!...”. O resultado foi que os jovens conseguiram o crédito para o investimento inicial para o evento. A jovem veio a se transformar depois em uma importante e respeitada professora.

  Quanto ao evento, cuidadosamente preparado, foi um fracasso completo. Mesmo tendo ampla divulgação, apareceram apenas uns gatos pingados, pois na noite marcada houve uma tempestade que parou a cidade.  O caixa da campanha de Marcelo começou com déficit financeiro. Esse episódio confirma a máxima de que bom tesoureiro é aquele que sabe dizer não.

Fausto Matto Grosso

terça-feira, 1 de junho de 2021

 

OLEG TSUKÂNOV, UM RUSSO EM CAMPO GRANDE

Marisa Bittar

(Esta crônica será publicado no livro Histórias que ninguém vai contar)



  O PCB de Mato Grosso do Sul ainda não havia chegado a uma compreensão exata do que a Perestroika - programa de reformas de Gorbatchev - significava e eis que, em 1989, caiu o muro de Berlim. O ritmo dos acontecimentos foi tão surpreendente que, no dia 26 de dezembro de 1991, a bandeira da União Soviética foi hasteada pela última vez no Kremlin colocando fim à experiência socialista de 74 anos iniciada com a Revolução de 1917.

  Com o inesperado desfecho, soubemos que o Instituto de Ciências Sociais de Moscou, onde muitos camaradas haviam morado e estudado, tinha sido fechado e seus professores demitidos. Imediatamente, pensamos nos dois mais queridos pelos brasileiros, Oleg e Kapustin. A situação deles era tão difícil que, em 1992, Oleg sinalizou que estava disposto a vir para o Brasil, país que amava e, para isso, esperava ajuda do PCB.

  Naquele ano, como professores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Fausto Matto Grosso, Amarilio Ferreira Jr. e eu, com a colaboração do Professor Francisco Cock Fontanella, empreendemos intensas tratativas que envolveram o interesse da UFMS, representada pelo Reitor Fauze Scaff Gattass, e o MEC, determinado a receber acadêmicos russos nas universidades brasileiras.

  Foi assim que no primeiro semestre de 1993, desembarcaram em Campo Grande, Oleg Petrovitch Tsukânov e Ludmilla Tsukânova, que ali mesmo na chegada, começou a colocar em prática as primeiras frases em português que certamente vinha aprendendo com o professor perfeccionista que a acompanhava e que, a cada palavra, a corrigia enquanto eu dizia que seu português estava ótimo! Também nos primeiros instantes em solo sul-mato-grossense, Oleg nos reservou uma enorme surpresa: com seu habitual sorriso maroto, acompanhado da palavra “genial!”, uma de suas favoritas, tirou uma pasta azul-claro da sacola e nos perguntou: “Adivinhem o que tem aqui?! Foi a última coisa que consegui no Instituto!”. Ao desamarrar as fitas da pasta, deparei-me, emocionada, com os certificados do Curso que Amarilio e eu havíamos feito lá, nos anos de 1980, com os nossos nomes verdadeiros! Eu jamais havia imaginado que eles existissem e muito menos que algum dia teríamos a chance de manter a prova de uma experiência tão incomum.

  Dotado de rara inteligência, doutor em Ciências Econômicas pelo Instituto de Relações Internacionais de Moscou, Oleg falava e escrevia em cinco línguas dentre as quais o português. Adorava lembrar que seu nascimento havia sido em um 9 de maio, dia que ficou na história como o do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Ele nos contava que, tendo nascido em 1938, desde menino tinha orgulho de seu aniversário coincidir com as celebrações da libertação do mundo do nazi-fascismo.

  Chegando à UFMS, Oleg foi professor em vários cursos, realizou palestras em muitas outras universidades brasileiras e, devido à sua cultura e formação acadêmica, contrastava com o nosso provincianismo, que frequentemente o exasperava, sem chegar, no entanto, a diminuir sua paixão pelo que fazia, principalmente a dedicação aos alunos. Oleg imediatamente se tornou uma sensação nos meios acadêmicos e culturais, sempre concedendo entrevistas, escrevendo e publicando.

  Assim foram transcorrendo os seus anos em Campo Grande, cidade que ele dizia ser a sua preferida, gosto que não coincidia com o de Ludmilla, que sentia muita falta da vida cultural que tinha em Moscou. Sempre empenhados na permanência do casal entre nós, aquele grupo que havia conseguido a sua vinda em 1993, obteve novas renovações de seu contrato com a UFMS tanto com o Reitor Fauze Gattass quando com seu sucessor, o Reitor Chacha. Quando essas sucessivas estratégias se esgotaram, ele se tornou professor da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB onde integrou o Mestrado em Desenvolvimento Local.

  Mas havia também a vida privada! E para preocupação constante de Ludmilla, Oleg logo descobriu as delícias de nossa carne bovina, o que também gerava apreensão de sua cardiologista, Dra. Maria Augusta Rahe Pereira, de quem ele vivia se escondendo para poder comer e beber o que gostava! Estrategicamente, ele providenciou um esconderijo em um barzinho na esquina da Rua 15 de Novembro onde, de vez em quando, ia tomar uma cervejinha. Como havia um semáforo ali, ele se protegia atrás de uma parede pois, como nos dizia rindo, “e se algum daqueles carros que parassem no sinal fosse o da Maria Augusta?!”

  Sua formação política soviética ficou cristalinamente comprovada quando chegou o momento de renovar contrato com o proprietário do apartamento em que ele e Ludmilla moravam. O desentendimento foi hilário! Isso porque ele tinha assistido a um pronunciamento do então Presidente da República Itamar Franco no qual afirmava que o preço dos aluguéis não deveria subir. De posse dessa informação, ele contradisse imediatamente o padre da Igreja Ortodoxa, dono da moradia, e de quem ele e Ludmilla haviam ficado amigos. De nada adiantou eu dizer que aquilo era só um pronunciamento, que no Brasil era assim mesmo, e que quase ninguém acreditava na palavra do Presidente. Ele ficava mais nervoso ainda e, vermelho de raiva, repetia alterado: “O Presidente disse!”. Resultado: o padre se manteve irredutível no preço e eles tiveram de se mudar da Rua Sebastião Lima, interrompendo o contato diário entre nós, pois Amarilio e eu morávamos a poucas quadras deles no bairro Monte Líbano.

  No final da década de 1990, apesar de todos os nossos esforços, seu contrato com a UCDB não pode ser renovado e, então, contratado pela Universidade Católica de Brasília, ele e Ludmilla deixaram Campo Grande, para lamento dos seus amigos. No começo de 2003, logo após regressar de uma viagem a Moscou, Oleg sofreu um ataque cardíaco que tirou sua vida. Se destino existe, ele voltou de sua pátria para morrer no Brasil.

  Dentre os seus vários escritos no Brasil, deixou uma brochura publicada pela UFMS “Novos desafios para a estratégia social”. No exemplar que deu a mim e ao Amarilio, ele escreveu uma dedicatória que me lembra puros sentimentos de adolescência: “Aos meus melhores amigos, uma pequena lembrança”. Oleg Tsukânov. 4.10.1996.