domingo, 26 de fevereiro de 2017



TEMPOS INCERTOS





Outro dia, durante a madrugada, em uma pequena cidade do interior, acordei com um barulho que já tinha perdido na memória: toda a cachorrada da redondeza latindo em um coro desconexo. Sabe - se lá qual deles começou, mas a babel estava formada.
Lembrei-me das discussões nas mídias sociais. Cada um com sua suposta individualidade, sem compromisso, incapaz de construir projetos compartilhados e transformadores. No dizer de Bauman (Babel), uma multidão de "solitários interconectados". A utilização das mídias sociais até já derrubou governos, mas não foi suficiente para produzir mudanças sociais e políticas profundas. O que serve para derrubar não serve necessariamente para construir. Para isso continua precisando a política, uma boa e renovada política.
Torna-se útil distinguir mídias sociais, de redes sociais, duas coisas diferentes, muitas vezes tomadas como sinônimas. Mídias são meras ferramentas tecnológicas, às quais devemos saudar. Redes sociais são conexões de pessoas que compartilham informações , valores e objetivos sociais, ou sejam compartilham uma cultura e podem, inclusive existir off line.
A atividade nas mídias sociais, marcada pela rapidez e instantaneidade, sem maiores reflexões, alimenta correntes mas não constroem reflexões e opiniões, não constroem cultura. São muitas vezes o encadeamento de impressões vagas e irrefletidas que não comprometem seu autores em ações. Dar uma curtida, não significa nenhum compromisso. A postagem de hoje não será, necessariamente, consistente com a postagem de amanha, a não ser nas seitas políticas. É como se essas participações fluidas fossem correntes descendo em um rio no meio das pedras, dentro da quais se perde a visão do todo, acessível apenas a quem observa da margem.
Também a suposta autonomia individual na rede é discutível, em uma realidade de fakes patrocinados e de instrumentos de busca de informação, como o Google e o Wikipédia, entre outros, que nos entregam a verdade pronta, acabada e indiscutível. Não precisamos passar pela dor de pensar. Essa é, na maioria dos casos, a autonomia intelectual cultuada.
No dizer de Bobbio, cultura significa medida, ponderação, circunspeção: avaliar todos os argumentos antes de se pronunciar, controlar todos os testemunhos antes de decidir.
Para que esse ativismo digital, se transforme em cultura e opinião política, tem que juntar a autonomia com a responsabilidade do indivíduo, tem que conviver com as dúvidas mais do que disseminar certezas, submetendo-se ao escrutínio da razão.
Qualquer avanço tecnológico desde os paus e pedras do homem primitivo, passando pelo arado, pela máquina a vapor, pela automação ou pela uso das ferramentas de informações e conhecimento, marca o conjunto das relações humanas. A cada avanço corresponde o elenco das ideias e valores, das instituições e organizações, da ética e da estética, da moral e dos costumes, enfim somos a cultura do nosso tempo.
O desabamento das ideologias estruturadas, onde se confrontavam os valores da esquerda e da direita, segundo alguns, representou o fim da história. O mundo atual seria definitivo. Estaríamos submetidos a essa cultura marcada pelas diferenças sociais, pela fragmentação, pelo individualismo, pelo hedonismo e pelo consumismo.
Bauman ao contrário, afirma que estaríamos, sim, vivendo um novo momento de transição. Se Marx, descrevendo processos anteriores, afirmava que "tudo que era sólido se desmanchava no ar", esse autor chama a atenção para a realidade dessa "sociedade líquida" que se ajusta a cada caso e circunstancia, onde tudo é provisório e caótico, onde não existem verdades e sim narrativas diversas, igualmente válidas.
Para ele, essa "cultura" não afirma e não pode servir de base para nenhum avanço civilizatório. Viveríamos sim um "interregno", até que atingíssemos um novo estágio com novas instituições. A grande questão seria qual o tempo e o preço humano a pagar enquanto durasse essa transição.

Fausto Matto Grosso
Engenheiro Civil, professor aposentado da UFMS
26.02.2017



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017


O LEGADO DA IRRESPONSABILIDADE


Recentemente voltaram aos noticiários as questões relativas ao legado da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Veio à luz a emblemática situação do Estádio do Maracanã. Reformado para a Copa de 2014 ao custo de mais de R$ 1,3 bilhão aos cofres públicos, serviu à abertura e encerramento das Olimpíadas e hoje se encontra sem dono e sem responsável, em abandono total. O caso do Parque Olímpico do Rio de Janeiro também é lamentável. Com suas instalações abandonadas e depredadas. Triste história do glamour ufanista de um Brasil que não sabia viver a sua realidade.
Alguns desses estádios foram construídos, superdimensionados, onde não haveria futebol para mantê-los depois da Copa, a exemplo do Mané Garrincha em Brasília, cuja taxa de ocupação é de cerca de 20%, e do Estádio de Cuiabá com 13% de ocupação. Para se ter um parâmetro de comparação, estádios na Espanha tem cerca de 70% de ocupação e a Alemanha mais de 90%.
Nas outras infraestruturas, com maior efeito positivo para a população, como as de mobilidade urbana e aeroportuária, muita coisa ficou pela metade. Nossa vizinha Cuiabá é um dos mais pródigos exemplos. A prometida despoluição da Baia da Guanabara, talvez fique a esperar por outra Olimpíada.
As Copas do Mundo, realizadas de maneira mais econômicas em outros países, também apresentavam balanços negativos, o que poderia ter sido aproveitados pelo Brasil, mas o ufanismo irresponsável prevaleceu. Era a época de gastar por conta do "ouro dos tolos" do pré-sal e de marcar projetos de poder.
Nosso país é pródigo em exemplos dessa natureza. Apesar das nossas imensas carências sociais e de infraestrutura, somos grande produtores de elefantes brancos e de esqueleto de dinossauros inacabados, marcas das irresponsabilidade de muitos administradores públicos, apesar das restrições impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Não entendem que governar é "resolver problemas" como indicam as boas recomendações da gestão pública responsável, mas sim "fazer obras", celebradas de preferência em concreto armado para deixar a marca pessoal dos governantes, ou outras externalidades, tanto é assim que quando novos governantes são eleitos, as obras dos governantes anteriores tendem a ficar abandonadas.
Até os marcos das obras, muitas vezes são consagrados em concreto, como em recentes administrações de Campo Grande. As obras foram até numeradas em totens, e o pior, um prefeito dando sequencia aos números do anterior, em um autêntico estelionato político. Talvez daqui a uns mil anos, algum arqueólogo que por aqui escave, poderá ficar intrigado com uma grande civilização que por aqui existiu, que tantas maravilhas construiu, mas não deixou outras marcas para a civilização, além dos marcos.
Muitos devem lembrar do Morenão de ontem e de hoje. Com capacidade para quarenta e cinco mil torcedores em um Estado que não tem futebol, e sempre representou um enorme ônus financeiro para a UFMS, o que resultou no seu sucateamento, só agora parcialmente recuperado para o próximo campeonato estadual.
Temos também a sucata da antiga rodoviária, inaproveitada, e o esqueleto em concreto e aço da rodoviária que não se concluiu na região da Cabreúva, por inadequação de localização. Temos a infraestrutura do antigo Trem do Pantanal também abandonada e depredada.
Para consagrar esse processo de decisão sobre prioridades, temos o Aquário do Pantanal. Fiquei encantado com a ideia desse atrativo para o turismo de passagem e de eventos em Campo Grande, mas não aprovaria o gasto de um centavo de dinheiro publico para esse empreendimento, afinal uma aquário vale quantos Centros de Educação Infantil que a cidade continua esperando? Felizmente começam a correr notícias de negociações para que uma empresa termine a obra por conta própria e seja ressarcida com os rendimentos da visitação. Ufa, até que enfim, de volta ao que deveria ser o começo.

Fausto Matto Grosso 
Membro do Movimento por uma Cidade Democrática

08.02.2017