quinta-feira, 8 de abril de 2021

 

O JACARÉ E O PRESIDENTE



  O Brasil é o país do jogo do bicho. Aqui, o bicheiro tem mais credibilidade do que a maioria dos nossos políticos. O jogo do bicho é considerado uma instituição nacional séria. Entretanto vimos outro dia o Presidente usar um bicho, o jacaré (57, 58, 59, 60), animal típico do nosso Pantanal, para assustar os maricas que se submetessem a vacinação. A que ponto pode chegar um negacionista!

Mas, virar jacaré também é a descrição que se dá à aparência de um gráfico onde há uma diferença cada vez maior entre os percentuais a favor e contra uma determinada questão.

A partir de dezembro passado, começou a aumentar de maneira consistente, a diferença entre a avaliação negativa e a avaliação positiva do Governo Bolsonaro, e essa parece uma tendência estável a curto e a médio prazos. O jacaré começou a abrir a boca para o Presidente e parece que sua fome vai continuar crescendo.

  Existem, atualmente, duas incertezas críticas sobre a continuidade dessa tendência: a evolução da pandemia e a evolução da economia. Mas sempre teremos que contar também com os torpedos que o presidente, seus ministros e seus filhos, vez por outra, jogam contra o próprio governo.

A maioria dos analistas aponta que a pandemia vai piorar ainda mais antes de começar a melhorar. Hoje, com mais de quatro mil mortos por dia, já se fala em uma terceira onda. Pesquisa da Universidade Federal Fluminense já aponta para probabilidade de mais de cinco mil mortos por dia. A crise do Covid está fora de controle e a opinião pública atribui a Bolsonaro a principal responsabilidade.

Na economia, pesquisadores apontam que a crise deve ser mais longa e mais profunda do que aquela causada pela quebra da bolsa de valores americana, em 1930. Um dos motivos que leva a esse entendimento é o fato de que a recuperação das atividades econômicas será difícil. Como já é sentida nos ramos do turismo, dos esportes e do entretenimento, essa situação será generalizada para vários outros ramos da atividade econômica. Essa situação é agravada pelo fato de estarmos passando por uma transição produtiva que tem resultado em novas plataformas de trabalho não disponíveis para o conjunto da população. O home-office, por exemplo, não é uma forma laboral acessível a todos e muitos perderão definitivamente os seus empregos.

O governo aposta no impacto positivo do novo coronavoucher de R$ 250,00, mas seu valor e sua amplitude são mais reduzidas que a da ajuda anterior de R$ 600,00, que representará um padrão de comparação, com sentimento de perda pelos beneficiários. A perspectiva é, portanto o aumento das dificuldades do Presidente. Essa parece representar uma tendência estável, o que tem levado Bolsonaro a ter cada vez mais tentação para o autogolpe.

  Acossados por essas ameaças, chegamos à situação atual. A pesquisa abril do Poder Data, mostra que, desde que começou a pandemia, o governo está em seu pior momento. A desaprovação é recorde: 59% e a aprovação é a menor: 33%. Essa bolha de um terço de apoiadores de Bolsonaro é que fornece oxigênio para o capitão. A situação parece ser de piora das condições de sobrevivência política do Presidente.

Se a eleição fosse hoje o segundo turno das eleições seria disputado entre Lula e Bolsonaro, e o Presidente perderia de 38% a 42%. Outras pesquisas de segundo turno indicam que além de Lula, Ciro e Huck ganhariam do capitão no segundo turno, o que é um fato alvissareiro que despolariza a eleição. O brasileiro vai poder votar tranquilamente a favor do seu candidato e não ser obrigado fazer voto útil.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

sábado, 3 de abril de 2021

 

A CLASSE DOMINANTE NA UNIÃO SOVIÉTICA

Marisa Bittar


(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguém vai contar)

  Em 1981, depois de cinco anos do meu ingresso no PCB, tive o privilégio de receber a missão para estudar na União Soviética. Pelo fato de eu ser uma das responsáveis pela educação dos militantes secundaristas, fui selecionada para a primeira turma que seria enviada para lá depois dos “anos de chumbo”.

  O esquema de segurança montado pelos soviéticos para sairmos do Brasil e chegarmos a Moscou foi algo que até então eu só conhecia em filmes. O fato é que, depois de um intrincado e bem bolado plano, desembarcamos na “pátria do socialismo”. No grupo iam mais dois camaradas de Campo Grande, mas durante todos os voos ficamos separados uns dos outros. A emoção que senti quando pisei aquele solo foi indescritível, mas a rápida sequência de acontecimentos nos momentos seguintes exigiu atitudes práticas. Ainda dentro do aeroporto, fomos levados a uma sala na qual havia outros brasileiros e, lá, dois membros da KGB recolheram nossos documentos e nos instruíram a escolher nomes falsos a fim de sairmos dali com uma identidade russa com a qual iríamos viver. Do aeroporto, fomos levados a uma “dasha”, isto é, casa de campo, onde passaríamos as primeiras semanas. Exames médicos e aulas de russo ocuparam o nosso tempo naquele lindo lugar.

  Finalmente chegou o dia de irmos para o Instituto de Ciências Sociais, em Moscou, onde moraríamos e estudaríamos. Para minha surpresa, eu, que era a única mulher entre os brasileiros, fui designada a ser chefe do coletivo e, por isso, as minhas responsabilidades seriam maiores.

  A chegada ao Instituto foi de grande euforia e emoção. Deparamo-nos com um prédio imponente e uma pracinha na frente. No hall, havia um busto de Lênin e no pátio interno que dava acesso às moradias, um de Marx. Depois de instalados, fomos chamados a um encontro com o Diretor no prédio central. Juntamente com o nosso “pirivôtchi” (tradutor), lá fomos nós. Sentados à frente da principal autoridade do Instituto, ouvíamos as suas informações sobre o funcionamento de tudo ali e as suas rígidas recomendações sobre o nosso desempenho, isto é, sobre o que esperavam de nós. A tudo respondíamos que sim, claro, que estava tudo certo, que faríamos o melhor possível e, de vez em quando, arriscávamos até uma palavrinha em russo para impressioná-lo. A essa altura, nosso tradutor, já ciente de uma certa malandragem associada a brasileiros, achava graça da nossa exibição linguística.

  Após concordarmos com tudo o que o Diretor nos determinava e certos de estarmos fazendo uma boa figura, ele, de repente, nos perguntou assim: “Vocês, é claro, ouviram falar muito em seu país, dentre as difamações anticomunistas, que aqui na União Soviética, existe uma classe dominante”. Ficamos desconcertados. Classe dominante no socialismo?! “Não, senhor”, alguém de nós respondeu demonstrando convicção. E ele: “Vocês devem ser sinceros, sabemos que ouviram”. “Bem, algumas vezes ouvimos, mas bem poucas”. Novamente, ele nos arguiu: “Poucas? Não é possível, sabemos que foram muitas. Os anticomunistas têm preferência por dizer que aqui existe uma classe dominante”. Nós nos entreolhamos desorientados e então, como eu deveria ter maior responsabilidade sobre o meu coletivo, resolvi dizer: “Realmente, no Brasil falam isso, mas é que lá falam muita coisa sem saber, falam por falar”. Com isso, achei que a situação estava salva, mas ele me encarou e disse: “Pois eles estão certos. Aqui existe, sim, uma classe dominante”. Ficamos pasmos. Como seria possível o próprio Diretor admitir que existia a tal “nomenclatura”, isto é, os privilegiados do sistema? Ele insistiu: “Vocês sabem quem é a classe dominante daqui? Aquela para quem toda a sociedade se desdobra para dar o melhor de si?”. Boquiabertos, nenhum de nós se arriscou a dizer mais nada, pois já estávamos afundados em nossa tentativa de mentir e incrédulos com aquela verdade. O Diretor, então, do alto de sua autoridade, nos comunicou: “A classe dominante da União Soviética são as crianças. Mesmo na tragédia da Guerra, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para nunca lhes faltar o alimento, o uniforme escolar, os cuidados de toda a sociedade, pois elas são o futuro do socialismo”.

Marisa Bittar