quarta-feira, 25 de dezembro de 2019


MEGA-SENA DA VIRADA


  As loterias são jogos de azar, ou seja, para que um tenha sorte, todos os outros têm que ter azar. Eis uma bela metáfora sobre a sociedade.
  A loteria teria surgido na Babilônia de Nabucodonosor II. O imperador, um personagem do Primeiro Testamento, era dado a ter sonhos cujo interprete era o profeta Daniel. Certa vez o sonho avisou que ele teria uns tempos de maluco beleza o que, de fato, aconteceu.
  Por ser um assunto importante, trataram de loterias os intelectuais Jorge Luís Borges e Zigmunt Bauman e até os malucos belezas Raul Seixas e Paulo Coelho
  Pelo conto de Borges, fica-se sabendo que a loteria na Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Comprava-se dos barbeiros, em moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Quando dos sorteios, os contemplados recebiam os prêmios em moedas de prata.   Depois de certo tempo, essas "loterias" fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança.
  Adveio então uma reforma: a intercalação de alguns números adversos entre os números favoráveis.  Os números de azar poderiam conduzir o apostador ao pagamento de uma multa, à prisão ou até a mutilação de algum dedo. Mediante essa reforma, os compradores expunham-se ao duplo risco de ganhar ou ser castigado, ou seja, às vicissitudes do terror e da esperança. Esse perigo despertou, como é natural, maior interesse do público.
  Dialogando com o conto de Borges, Bauman observou que a loteria é uma instituição que recicla a vida mortal, transformando-a numa sequencia interminável de novos começos. Cada novo começo pressagia outros riscos, mas num pacote que compreende novas oportunidades. Nenhum dos começos é definitivo e irrevogável. Assim a vida caminha acompanhada da incerteza e da esperança.
  O século XX foi um período em que era possível planejar e criar metas à longo prazo. Hoje, é preciso ser rápido, planejar a curto prazo, o que torna tudo inseguro e passível de mudanças. É sociedade líquida de que fala Bauman. A vida nunca é definitiva e o recomeço tem que ser feito a cada três ou quatro dias.
  Assim, vivemos de domingo a quarta, dia de megasena, e recomeçamos tudo novamente de quinta a sábado, sempre instigado pelo maluco beleza Raul Seixas, que ensinava que, “como não sabemos por inteiro, ganhar dinheiro, o que é muito fácil, não podemos parar”.
  Afinal, para nossa tranquilidade espiritual, ganhar dinheiro não é pecado. Respeitáveis estudiosos mostram que a Bíblia não condena o jogo. A Bíblia, entretanto, nos alerta para que fiquemos longe do amor ao dinheiro (I Timóteo 6:10; Hebreus 13:5). As Escrituras também nos encorajam a que fiquemos longe das tentativas de “enriquecimento fácil” (Provérbios 13:11; 23:5; Eclesiastes 5:10). Certamente o jogo gira em torno do amor ao dinheiro e inegavelmente tenta as pessoas com a promessa de riqueza fácil e rápida, mas jogar por distração é pratica aceitável para os seguidores de Deus. Espero que não haja discriminação quanto aos outros.
  Para que seja legal e moral, basta que tenhamos merecimento. Afinal, quem de nós não levou buzinada neurótica, só porque estava dentro do limite de velocidade? Quem não teve que esperar no 0800, escutando musiquinha ou marketing, enquanto ansiava pelo inatingível atendimento de uma pessoa humana atenciosa? Quem não procurou cortar caminho pelo atendimento digital e ao final este mandou ligar para o atendente inacessível? Quantos esperaram por cartões de créditos, nos últimos três meses e quando o cartão chegava, não vinha a senha, ou vice-versa? Quantos foram colocados como caloteiros, na compra de aplicativos e outros serviços digitais porque o número do cartão mudou sem que pedíssemos? Espero que esses méritos sejam computados nos critérios da premiação. Que vençam os justos e os oprimidos
  Se não é pedir muito, em 2020, espero que a Reforma Fiscal não acabe com esse único imposto justo, o imposto sobre a esperança.

Fausto Matto Grosso
Engenheiro civil e professor aposentado da UFMS

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019


20 ANOS DEPOIS


  Em artigo recente relatei a elaboração do MS-2020 - Cenários e Estratégias de Longo Prazo para Mato Grosso do Sul, vinte anos atrás, durante o governo Zeca do PT.
  É natural que se indague sobre os resultados dessa iniciativa. Deu certo ou não? Quais os resultados atingidos? Vale a pena planejar o longo prazo?
  O plano anunciava que “em 2020  Mato Grosso do Sul será uma sociedade integrada, com justiça social, alicerçada numa economia competitiva em bases tecnológicas modernas e ambientalmente sustentáveis, num quadro político de governabilidade e elevada competência gerencial”. 
  Apesar de termos avançado em vários aspectos, esse não é o retrato atual de Mato Grosso do Sul. Muito distante ainda estamos do que se pretendia. Há um déficit em inclusão social, prosperidade econômica, sustentação ambiental, informação e conhecimento, governabilidade e competência gerencial.
  Nosso PIB deveria atingir U$ 46 bilhões (equivalente ao Paraná na época); um PIB per capita de U$ 11.754 (equivalente à Espanha na época); e um IDH de 0,930.
  Na realidade, em valores aproximados, atingimos um PIB de U$ 23 bilhões, a metade do pretendido; um PIB percapita de U$ 8.533, cerca de 75% do previsto e nosso IDH é de 0,729, muito aquém do que se pretendia.
  O fato é que um plano de longo prazo depende de variáveis sobre as quais não se tem controle, como o contexto internacional e nacional. Por isso mesmo, o plano é apenas um ponto de partida, o mais importante são seus ajustes racionais ao longo de sua trajetória de avaliação e gestão.
  O sucesso de um plano de longo prazo depende também, da estatura dos governantes. Um plano não consegue ser maior que seu líder (Matus). A palavra estratégia vem do grego, e significa a exatamente a “arte do general”. A agenda do governador tem, pois, que “dialogar” permanentemente com o Plano.
  O MS 2020 não produziu apenas uma agenda de projetos governamentais, mas também de ações dos agentes econômicos e sociais. Um plano não é obra do acaso, é uma construção social (Godet). Nesse sentido, o plano é uma ferramenta tecnopolítica e demanda a confiança nos líderes e continuidade nas ações.
Os sucessivos governadores, após a elaboração do plano, não cumpriram esses requisitos. A tradicional descontinuidade nos governos e as diferentes visões sobre a importância do planejamento fizeram o Plano perder centralidade. Essa é uma das razões da insuficiência de seus resultados.
  Mas de qualquer forma, a elaboração do plano representou um momento criativo. Foram feitas leituras técnicas e políticas cuidadosas da nossa realidade, que influenciaram a pauta na sociedade. Em todos os municípios do estado foram feitas oficinas com a participação de lideranças locais. Sementes foram plantadas.
  Assim, várias das iniciativas apontadas no MS 2020, foram colocadas na agenda dos sul-mato-grossenses. A transformação de Dourados em uma cidade universitária, isto se materializou; o fortalecimento econômico da Costa Leste pela vantagem locacional e incentivos fiscais está acontecendo; e o aumento da competitividade da agropecuária e do turismo da mesma forma.
  O pólo minero-siderúrgico, o pólo gás químico, a saída para o Pacifico, a ferrovia para Dourados, o fortalecimento do eixo industrial Campo Grande – Três Lagoas continuam na ordem do dia. Da mesma forma a agenda de meio ambiente, desenvolvimento social e qualidade de vida.
  Sistematizando uma resposta para as questões colocadas inicialmente, apesar da insuficiência dos resultados, valeu a pena ter feito o MS 2020. Os planos não se esgotam em si, porque constituem um importante momento de aprendizado da sociedade.
  O desafio da construção do futuro é árduo. Como disse Eduardo Galeano, a utopia está lá no horizonte, quando me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

FAUSTO MATTO GROSSO
Ex- Secretário Estadual de Planejamento, Ciência e Tecnologia de MS