sexta-feira, 24 de abril de 2020


O COTIDIANO DEPOIS DO CORONAVIRUS
 Série “Depois do Coronavírus” propõe reflexões para o período pós ...
  Normalmente contamos os tempos, através do calendário. Os historiadores costuma usar outras escalas. Consideram a ocorrência de fatos significativos de inflexão na trajetória da vida da sociedade.
  O historiador inglês Eric Hobsbawm, por exemplo, considerava que “o curto” século XX, só começou em 1914 com a Primeira Guerra Mundial e o seu término ocorreu em 1991, como a desintegração da União Soviética. Para a historiadora Lilia Schwarcz (USP/Princenton) e outros especialistas faltava um símbolo mais forte para o fim do século 20. E esse marco seria a pandemia do coronavírus.
  Não que a ruptura provenha diretamente da doença, mas trata-se do coroamento de um processo que já vinha amadurecendo e que explodiu com a crise. É provável que quando tudo voltar ao normal, o normal seja outro.
  Uma nova cultura se imporá, com revisão de crenças e valores. Consumir por consumir deverá sair de moda; morar perto do trabalho ou trabalhar em casa deverá ser valorizado; a cooperação em redes, em comunidades e entre vizinhos sairá fortalecida.  Empresas serão mais cobradas quanto ao cumprimento das suas responsabilidades sociais e a ciência será mais valorizada em detrimento de crendices obscurantistas.
  Profundas serão as mudanças nas relações de trabalho. O desemprego em massa levará ainda à maior precarização das relações entre patrões e empregados, com mais insegurança aos que vivem do trabalho. A sociedade terá que bancar os custos sociais dessas mudanças. Por isso, aumentou muito no mundo, a consciência sobre a necessidade de programas de Renda Mínima Universal. A isso se agregará a necessidade de fortes investimentos em educação, uma das principais formas de diminuição das desigualdades sociais.
  Viveremos uma reconfiguração dos espaços de trabalho. O trabalho remoto ou em casa - home office - que já é praticado por  muitos, inclusive em alguns casos, com desumana superexploração, se imporá avassaladoramente para os profissionais liberais e empregados de empresas que buscarão o aumento da produtividade desse o modelo. Novas regulamentações serão necessárias para essas novas formas de contratação do trabalho.
  Haverá também impactos na estruturação das residências, onde se valorizará a existência de espaço para o trabalho. Nos condomínios e edifícios, espaços compartilhados (coworking) serão considerados imprescindíveis. Tudo valerá a pena, para as pessoas fugirem do transporte caro e de longa distância, desconfortável e cansativo, poluidor do ambiente.
  Novos modelos de negócios se imporão. Conviveremos com a ampliação das compras virtuais e com a tele-entrega. Os ambientes presenciais de bares, restaurantes, cafeterias e academias também deverão ser redesenhados para garantir maior afastamento entre as pessoas.
  O fim da epidemia reforçará a discussão sobre as novas formas de aprendizagem, presencial e à distância, e que demandará novas formulações pedagógicas, que tirem essas decisões do âmbito dos interesses do ensino comercial. Ainda no plano da educação, novas formas de socialização, deverão ser incrementadas, compatíveis com a realidade da sociedade em rede.
  A atividade cultural, durante a pandemia, experimentou várias formas imersivas e deverá continuar agora a fazer uso de novas plataformas e mídias para shows e espetáculos online.
  Muitas outras mudanças deverão ocorrer nas diversas áreas da atividade humana. Muitas opiniões serão quebradas e substituídas por novas concepções. Uma delas é que o Estado não serve para nada. O SUS desmente isso e a construção da segurança estratégica de insumos para a saúde será um novo desafio.
  Após décadas de supremacia do discurso liberal, está ocorrendo uma volta à razão. O mercado serve para muita coisa, mas não consegue resolver desigualdade e insegurança social. O fato é que até críticos do Estado, hoje não podem deixar de a ele recorrer, para sobreviver. Hoje nenhum governo pode se dar ao luxo de ser ultraliberal, principalmente em época de crise.
Fausto Matto Grosso
Engenheiro e professor aposentado da UFMS

quinta-feira, 9 de abril de 2020


CORONAVIRUS E O NEGACIONISMO
  Por que negamos fatos que contrariam as nossas crenças | Nexo Jornal
A crise do coronavirus, em alguns aspectos, nos remete a Idade Média, à “idade das trevas”, com a disputa entre a luz e a escuridão. Naquele período, a dominação religiosa impedia o desenvolvimento da razão, das artes e das ciências, criando uma era de atraso e primitivismo. É desse período de terror da Inquisição, a condenação à fogueira de Giordano Bruno, frade dominicano, filósofo e teólogo italiano, por prática de heresia, por defender teorias científicas, principalmente astronômicas, contrárias às da Igreja Católica. 
  Quando pensávamos que tudo isso tinha ficado para trás, em plena sociedade do conhecimento, ressurge a epidemia da negação da ciência.
  Negacionismo é o nome que se dá à rejeição de conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso científico, em favor de ideias obscurantistas, radicais e controversas. É um tipo de narrativa que não tem base no conhecimento e nos fatos e trabalha apenas com o objetivo de negar incômodos da realidade.
  Temos negacionismo para todos os gostos. Há os que duvidam do papel do homem no aquecimento global, apontando para um complô dos países desenvolvidos para frear aqueles que estão em desenvolvimento. Há os criacionistas, que travam uma disputa cultural, política e teológica sobre as origens da Terra, da humanidade, da vida e do universo.
  Duvidar que o homem foi à Lua, como acontece com 25% dos brasileiros, ou ter a convicção de que a Terra é plana, pode soar como motivo de piada, algo apenas cômico e inofensivo. Mas as desenfreadas crenças nessas narrativas esdrúxulas têm sido apontadas como um risco à democracia moderna. Afinal, o estrago provocado pelo negacionismo não se reduz ao que se nega, representando também uma quebra de confiança em relação às instituições e um dissenso acerca de temas que já são consensuais. A democracia não funciona, sem confiança nas instituições, inclusive nas científicas.  A ciência é principal forma de compreender o mundo e atuar sobre ele, sob pena de vermos consensos universais serem trocados por crendices.
  Esse processo de regressão histórica e cultural que temos presenciado, raramente é espontâneo. É na maior parte fomentado por grupos financiados e promovidos por fabricas de idéias (think tanks) conservadoras, grandes indústrias e poderosos políticos e formadores de opinião.
  No caso brasileiro, grande importância tem sido exercida pelo influenciador digital, ex-astrólogo, ideólogo da nova direita brasileira, autoproclamado filósofo, Olavo de Carvalho, que inspira o Presidente e seus filhos. Adepto da teoria da conspiração, entre as suas proezas intelectuais afirma, com todas as letras, que o nazismo é de esquerda. Olavo é um santo guerreiro, montado no cavalo da ignorância, na sua luta mortal contra o dragão do “marxismo cultural” que ele enxerga onde houver claridade.
   Amparado por essa retaguarda ideológica é que o governo Bolsonaro, com o seu “negacionismo histórico” da ditadura e apologia de torturadores, já produziu diversos vexames nacionais e internacionais nas áreas de meio ambiente, educação, cultura e relações internacionais e vem tentando descredenciar a história, a ciência em geral e a inteligência.
  Na atual crise do coronavirus, o negacionismo tem obrigado o ministro da Saúde a dispensar tempo e energia, que seriam mais úteis no combate à doença, à luta em defesa da ciência.
  Desde o seu autodesterro em Richmond, nos Estados Unidos, Olavo de Carvalho, que nomeou ministros e controla a área ideológica do governo, tenta agora destituir ministros. No dia em que escrevo (8), o autoproclamado filósofo, do alto da sua teoria da conspiração, critica a “passividade dos generais” e declara que o ministro da Saúde deveria ser preso porque, junto com os governadores querem manter as pessoas em quarentena, para destruir a economia brasileira.
  Haja escuridão. Será que precisaremos ter um novo Giordano Bruno, nesta idade média que escureceu o Brasil em pleno século 21?

Fausto Matto Grosso
Engenheiro e professor aposentado da UFMS