sábado, 27 de fevereiro de 2021

 

ENTRE VÓRTICES, CICLONES E CAVADOS


A política é como uma nuvem, ensinava Tancredo Neves. Em política também existem ventos em altitude, sistemas de alta e baixa pressão, vórtices, ciclones e cavados. Sem programa de governo, com governabilidade instável e com precária capacidade de gestão, o governo Bolsonaro é pródigo em produzir surpresas e instabilidades.

O capitão saiu das eleições municipais de 2020 como um grande derrotado. Embora tenha adotado a tática de fingir-se de morto, os candidatos por ele apoiados foram fragorosamente derrotados. Eram 13 e apenas dois se elegeram. Entre os derrotados Crivella no Rio de Janeiro e Russomano em São Paulo, bem representativos do obscurantismo bolsonarista. Os únicos eleitos foram os prefeitos em Parnaíba no Piauí e Ipatinga em Minas Gerais.

As eleições municipais formam a base para as disputas nacionais, portanto é importante levá-las em conta. O partido que ainda mais elege prefeitos é o MDB que, de qualquer forma, pouco tem contado na política nacional. No Centrão cresceram PP e PSD. Enquanto o PSDB teve grande derrota, o DEM, de Rodrigo Maia, foi vitorioso com grande salto no número de prefeitos.  A esquerda e a cento-esquerda saíram também derrotadas, apenas o Cidadania aumentou o número de seus prefeitos.

As eleições dos presidentes da Câmara Federal e do Senado também afetaram profundamente o rumo da política, um verdadeiro ciclone. Bolsonaro que já perdera os olavistas e lavajatistas, enfim se entregou ao Centrão, que prometera destruir. Com isso ganhou temporariamente uma blindagem no Congresso contra o impeachment e impôs derrotas a dois prováveis antagonistas, o DEM de Rodrigo Maia e ao PSDB de Dória, rachando-os de forma humilhante. Como disse o senador Tasso Jereissati, “os partidos foram triturados no Congresso”.

Para quem tinha dúvida, o livro-entrevista do General Villas Boas revelou que os militares de alto escalão das Forças Armadas também estão ativos no jogo político e conspiram nos bastidores. Ao mesmo tempo Bolsonaro amplia a posse de armas e trabalha no sentido de transformar as polícias militares em milícias bolsonaristas; planta ventos parecendo querer navegar em tempestades, pescador de águas turvas que é. Isso demonstra como é frágil e instável a democracia brasileira e que as possibilidades de retrocessos autoritários ainda estão presentes na vida nacional. Um raio em céu azul é sempre uma possibilidade.

É com esse alto grau de indefinição política que caminha o processo eleitoral de 2022. Articulam também no Congresso mudanças na legislação partidária e eleitoral. É o caso do fim das cláusulas de barreira e a criação da federação de partidos, para atender demandas das pequenas legendas. Também cogita-se a aprovação do distritão, sistema regionalizado de voto em grandes distritos eleitorais, que valoriza o voto em chefes políticos regionais.

Enquanto isso Bolsonaro vai se movimentando tentando ajustar seu discurso para passar a impressão de que a estratégia continua sendo de política econômica liberal, representada por Paulo Guedes; mas, no caso da Petrobrás deu uma guinada populista e estatizante para agradar a sua base eleitoral e consolidar o poder dos generais do Palácio do Planalto.

Nesse clima instável, o Presidente vai vagando com iniciativas populistas, armamentistas e negacionistas para atender suas bases, ao mesmo tempo em que faz chantagem à educação e à saúde, para viabilizar recursos para o auxilio emergencial tão necessário.

  Apesar disso, com as pesquisas indicando sua aprovação no patamar de 30%, para a maioria dos analistas, Bolsonaro deverá estar no segundo turno nas eleições presidenciais. Falta saber quem estará com ele, quem vai encará-lo. Já estão na disputa Dória, Hadad, Ciro Gomes, Huck, Boulos e ainda correm por fora, Moro, Mandetta e o governador gaúcho Eduardo Leite.  Muitas outras candidaturas ainda poderão aparecer. Não se sabe qual delas prosperará, qual terá capacidade de aglutinar uma frente ampla contra Bolsonaro, única condição de derrotá-lo.

Candidatos não faltam, mas há que se avançar numa boa articulação democrática e num programa mínimo com para tirar o país do buraco em que se encontra.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiros e professor da UFMS

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

 O SOCORRO VERMELHO

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguem vai contar)



O Socorro Vermelho Internacional foi uma organização que surgiu a partir de iniciativa da Internacional Comunista, no início do século passado. Tinha como objetivo defender àqueles que fossem vítimas da repressão em seu país, por participar em protestos ou movimentos de contestação. A organização ajudava, inclusive financeiramente, presos políticos e famílias de vítimas da repressão. Sua conotação básica era a da solidariedade. Na concepção original era uma frente de trabalho de massas, que deveria organizar amplamente o apoio da população aos vitimados. Mal comparando, hoje seria uma espécie de Greenpeace, ou Médicos Sem Fronteiras dos perseguidos políticos.

No Brasil, foi criada em 1924 pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), e seu ponto mais alto se deu quando da repressão ao Levante de 1935, a chamada Intentona Comunista.

Existia uma seção do Socorro Vermelho em Mato Grosso (uno). Nos anos 1960/1970, tomava conta dessa atividade a discreta Dona Lígia Pletz Neder, esposa do dirigente histórico do partido, Alberto Neder. Ela era a responsável pela organização da solidariedade aos militantes em necessidades e às suas famílias. Foi substituída, nesse desafio, por Yonne Orro, ajudada por várias outras camaradas. Pontualmente, Marisa Bittar foi responsável pelo Acelino Granja, um dos nossos quadros mais atingidos pela repressão.

Como Granja, entre nós, existiram muitos outros companheiros que dedicaram toda a sua existência à luta política pela mudança social através dos sindicatos e movimentos populares. Muitos eram presos e suas famílias padeciam com as suas ausências Muitos morreram deixando suas esposas e filhos completamente desassistidos. Generosos e dedicados à luta na qual acreditaram, esqueciam-se de si, numa doação quase religiosa à causa. Moravam muitas vezes em casas humildes, sem condições sanitárias, na periferia da cidade. Era olhando para essa situação que existia o Socorro Vermelho.

Com recursos partidários, campanhas especificas de finança ou contribuição de simpatizantes e militantes, os recursos eram arrecadados e destinados principalmente à assistência à saúde e à ajuda humanitária.      Contribuíam para essa ação muitas pessoas amigas, voluntariamente ou não. Lembro-me de um episódio especial. Uma militante nossa recebeu, como honorários, um generoso depósito em sua conta bancária. Julgado não merecedora desse valor, nossa camarada chegou a devolver a quantia, que era de novo retornada à sua conta. Diante dessa situação resolveu usar o dinheiro para um amplo abastecimento de roupas, remédios, material de alimentação, de cozinha de vários companheiros que recebiam ajuda local. Foram dois carros de compras, fora o material de construção. Uma carta de agradecimento em papel oficial do Partido foi enviada ao doador, uma pessoa conservadora, assinada pelos vários beneficiados, acompanhada pelas respectivas notas fiscais.

Outra ajuda humanitária que muitas vezes ocorria, era a destinação de recursos às despesas funerárias dos velhos camaradas. Chegamos a manter no Cemitério Parque das Primaveras, em Campo Grande, um túmulo para essa finalidade. Lá esses dedicados lutadores eram enterrados ao som da Internacional, educativamente cantada, a pleno fôlego, pelo Dr. Alberto Neder, reforçado pelo coro titubeante dos demais camaradas.

Solidariedade era, também, uma forma de luta política.

Fausto Matto Grosso

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 

GORBACHOPP

(Esta crônica, será publicada no livro Histórias que ninguém vai contar)

    

Após o término da Segunda Guerra Mundial, o mundo restou dividido em dois grandes blocos geopolíticos, o primeiro liderado pelos Estados Unidos e o outro pela União Soviética. A Guerra Fria levou à instalação de dois poderosos arsenais, capazes de destruir, várias vezes, a humanidade e tornou-se imperiosa a luta pelo desarmamento. Buscando desarmar esse duelo mortal, no início dos anos 1980, o líder soviético Mikhail Gorbatchov desencadeou várias iniciativas em favor da paz, algumas delas unilaterais. Esse foi um dos seus maiores feitos, que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz em 1990.

  Nesse período, Gorbatchov viu crescer ainda mais o seu o prestígio mundial quando iniciou um processo de reformas internas do socialismo, com a Perestroika (restruturação econômica), a Glasnost (transparência) e a Uskorenie (aceleração do desenvolvimento tecnológico). Entretanto, seu enorme prestígio no exterior não correspondia ao apoio interno. Após uma tentativa de golpe de estado contra seu governo, Gorbatchov acabou sendo afastado em agosto de 1991. Com 89 anos, o ex-líder soviético, atualmente dirige, desde 1991, a Fundação Gorbatchov, e desde 1993, a Cruz Verde Internacional.

  No início da década de 1990, a juventude secundarista do partidão, homenageou-o, denominando Gorbachopp, a um bar que colocaram para funcionar no fundo da sede partidária em Campo Grande, com objetivo de finanças, mas também político. Surgiu aí um importante ponto de encontro suprapartidário da esquerda, que marcou época. Não só os jovens acorriam ao local, mas também vários intelectuais e dirigentes do partido. Era o espaço de confraternização e de trocas políticas e culturais, mas também ajudavam o crescimento partidário com a atração de novos filiados. 

  O trabalho dos jovens, liderado pelo organizador Orlando Rocha era pesado. Começava nas manhãs das sextas feiras, no Supermercado Soares, onde eram feitas as compras. Como não tinham carro, as coisas eram transportadas com o próprio carrinho do supermercado e subidas por uma escada bem íngreme até ao primeiro andar. Daí, vinham os preparativos das bebidas e dos petiscos, que incluíam pasteis, churrasquinhos e outros petiscos, feitos pelos próprios jovens. Às 18 horas o bar abria rigorosamente e começavam a chegar as pessoas para encontro e confraternização, que se tornaram rotineiras. Era muita conversa descontraída e rica politicamente.

  O bar, montado no sacadão da sede, era tocado pelos jovens, até a madrugada, quando começava o fechamento das contas e a faina da limpeza.

  Esse sacrifício, às vezes, era atenuado quando o camarada Onofre comparecia. Invariavelmente chegava com um bom uísque debaixo do braço, tomava a sua primeira dose e entregava a garrafa para ser vendida em doses pelo bar. Era uma oportunidade de se tomar um bom uísque a preços módicos. Mais, o que sobrasse do uísque, no fim da festa, podia ser tomado de graça pelos jovens. Afinal, o penoso trabalho revolucionário tinha que ter alguma compensação.

FAUSTO MATTO GROSSO



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

 

CERCADOS PELO EXÉRCITO

(Esta crônica será publicado no livro Histórias que ninguém vai contar)


O Centro de Educação Rural de Aquidauana (CERA) surgiu em 1974 por iniciativa de alguns agropecuaristas locais, durante o governo José Fragelli. Com essa denominação, funcionou até 2001, quando foi extinto. Durante os anos de 1994 e 1998, foi administrado pelo SENAR. Os estudantes eram alunos bolsistas em regime de internato para rapazes e semi-internato misto. Após a sua extinção, o patrimônio e o curso foi destinado à Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

  Seus alunos provinham de diversos municípios do estado e mesmo de estados vizinhos. Formavam uma espécie de comunidade à parte na cidade. Eram muitas vezes tratados como estrangeiros, que o digam aqueles mais afoitos que pretenderam arranjar namoradas na cidade. Era procurar encrenca certa. Os jovens do CERA tinham atividades culturais bastante intensa. Durante 10 anos, consecutivos produziram, realizaram e apresentavam peças teatrais orientadas pelo professor Paulo Corrêa de Oliveira, arquiteto, professor e diretor das peças. 

  Dentro da escola funcionava um núcleo partidário da juventude do Partidão, com a tolerância, a simpatia e a cumplicidade de alguns professores e diretores. Para reconhecer os jovens comunistas era fácil – todos usavam óculos, jogavam xadrez e usavam bolsas a tiracolo. A organização desses estudantes chegou a ter entre 15 e 18 membros, segundo relatado por alguns deles.

  A vida de internato era rotineira, focada nos estudos, o que propiciava bons resultados em termos escolares. Os jovens do Partidão tinham também outro interesse paralelo, a formação política, propiciadas por leituras, palestras ou por grupos de estudos. Às segundas feiras à noite tinham as reuniões partidárias realizadas abertamente debaixo de alguma árvore ou nos corredores dos blocos, à vista de todos, como um encontro normal de estudos escolares. Não sei por que, mas tinham a ideia de que realizar essa atividade de maneira clandestina seria mais perigoso. Nos fins de semana ocorriam as reuniões dos grupos de estudo, às vezes na cidade.

  Durante certo tempo fui encarregado de providenciar a remessa de livros para a insaciável sede de leitura daqueles jovens. Enviava os textos, muitas vezes através de Yonne Orro, dirigente do partido em Aquidauana. Era material introdutório ao marxismo, alguns clássicos de Marx, Engels e Lenin, e os manuais de materialismo dialético de Afanasiev, Thalheimer e Politzer e Marta Harnecker. Era o suficiente para incendiar aqueles jovens generosos com todas as certezas do mundo, inclusive a de que, com a completa eletrificação rural na URSS, seria atingido o comunismo. Só nos últimos tempos começaram a receber material de Gramsci.

Interessavam-se também pela questão agrária. Quatro Séculos de Latifúndio de Alberto Passos Guimarães e Os Sertões de Euclides da Cunha eram leituras obrigatórias. Certa vez fomos surpreendidos com a encomenda de A Função do Orgasmo, de Wilhelm Reich. Após certa indecisão nossa, acabaram sendo atendidos.

  Apesar de reclusos em internato, tinham certas regalias, que lhes permitiam participar das reuniões do partido na cidade, bem como viagens pelo movimento estudantil no Estado e eventos nacionais. A convivência no internato, o foco nos estudos e na formação política produziram uma geração de jovens bem formados e maduros politicamente. Após a conclusão dos cursos, muitos desses jovens voltaram para as suas cidades onde prestaram grande ajuda à organização do Partidão no interior do Estado.

  Um único incidente resta registrar. O trabalho político desses jovens nos enchia de orgulho e muitas vezes repercutiam fora dos limites do partido. Certa vez tivemos um problemão com a pixação de uma foice e martelo no paredão de pedra em um dos morros próximos. Seria uma resposta a uma pichação com a insígnia da organização católica conservadora Tradição, Familia e Propriedade (TFP). 

Nossos jovens continuam negando a autoria do ato até hoje. Teria sido um funcionário da escola, simples simpatizante. O glorioso Exército Brasileiro fechou a estrada de acesso á  escola, reteve o ônibus  que transportava funcionários e alunas, mandou descer todo mundo e manteve um funcionário pertencente ao PCdoB à parte durante a averiguação. A direção municipal do Partidão mandou queimar todo o material de agitação e propaganda, os exemplares do jornal A Voz da Unidade, salvo os livros, porque se temia uma batida geral na escola e alojamentos. 

Ao final, tudo restou tudo resolvido, foi apenas um pequeno incidente, nada que não pudesse ser mediado pelo diligente deputado Roberto Orro, grande amigo do partido. Quanto à TFP não se sabe de qualquer providência.

Fausto Matto Grosso

 

(Esta crônica foi escrita com a ajuda memória dos ex-diretor do CERA Paulo Esselin, do professor Carlos Machado e e dos ex-alunos Hélio Sampaio e Norton Hayd Rego).

 Ajustado em 17.02.2021 por sugestão do Professor Tito Carlos Machado e do engenheiro Pedro Celestino, Presidente do Clube de Engenharia do RJ)).
          Ajustado em 02,03.2021 por sugestão do ex-aluno Hélio Sampaio. 



sábado, 13 de fevereiro de 2021

 

LIMITES E FRONTEIRAS



Na antiguidade, na época do Império Romano, não havia a noção de limites, prevalecia a ideia de fronteiras. A fronteira era uma zona de transição onde os povos interagiam com suas trocas culturais e econômicas.

Com o advento dos estados nacionais passou a ter sentido a ideia de limites como término de um território. Nesse conceito prevalece ideia de distância e separação. Já a fronteira movimenta a ideia de contato e integração. Os limites são, portanto, assunto de domínio alta política ou da alta diplomacia, já as fronteiras pertencem ao domínio dos povos, ou seja, são um assunto local.

O Brasil é um país que teve limites antes de ter fronteira, antes mesmo, de ter população. Nossa primeira linha divisória foi estabelecida antes da nossa descoberta. O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494 na vila espanhola de mesmo nome, determinava uma linha imaginária, a partir da qual todos os territórios a leste, “descobertos ou a descobrir” pertenceriam ao Reino de Portugal e aqueles a oeste pertenceriam à Coroa de Castela. Esse limite caiu em desuso quando houve a União Ibérica (1580-1640). Neste momento, tanto Portugal como suas possessões passaram a fazer parte da Coroa Espanhola, o que propiciou que brasileiros avançassem para o oeste, com suas entradas e bandeiras.

Avançando no tempo, nas últimas décadas, da globalização, houve o enfraquecimento do poder dos estados nacionais e começaram a surgir de territórios transnacionais integrados.  A União Europeia é a consagração dessa tendência.

Agora, passados 150 anos do término da Guerra da Tríplice Aliança em 1870, é útil pensarmos nossa região na sua dinâmica passado, presente e futuro bem como explorar novas abordagens territoriais. Atualmente, temos no Brasil a definição de uma faixa de 150 km como faixa de fronteira, temos até um Programa de Integração e Desenvolvimento desse território. Do lado paraguaio também existe uma faixa de 50 km. Ambos os lados executam planos de desenvolvimento, separadamente. Um não olha para o outro. Estão de costas quando deveriam estar abraçados.

No interesse das populações fronteiriças estaríamos muito melhor se unificássemos os dois territórios, em projetos de desenvolvimento locais compartilhados, sob a liderança dos municípios. Isso seria útil na prestação dos serviços de saúde, de educação, segurança, entre outros, que reconhecessem realidades locais.

A realidade atual clama por uma nova abordagem dessa questão fronteiriça. Ainda temos questões não bem resolvidas dos brasiguaios, dos empreendedores brasileiros no Paraguai assim como de trabalhadores tidos como estrangeiros nos locais onde realmente trabalham, nos dois lados da fronteira.

 Para avançarmos no enfrentamento dessas questões, talvez pudéssemos desenvolver a ideia da construção de uma zona transnacional, institucionalmente integrada, onde se poderia implantar um estatuto do cidadão de fronteira, com direitos e deveres sociais, econômicos e políticos transnacionais. É uma ideia para discussão. Esse poderia ser um caminho para facilitar a integração binacional Brasil-Paraguai.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro, Mestre em Desenvolvimento Local e professor aposentado da UFMS.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

 

ELES ERAM MUITO BONS

(Este artigo será publicado no livro Histórias que ninguém vai contar)




Nos anos 1980, a juventude do Partidão era a elite do movimento estudantil em Mato Grosso do Sul. Eram jovens idealistas, sonhadores, corajosos e generosos, que queriam mudar o mundo. Não conseguiram isso, mas fizeram parte da nossa história política. Do território deles fazia parte, o Centro de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (CEPES), onde se formavam; a Livraria Guató onde proseavam; o Colégio Latino-Americano que abrigava muitas das suas reuniões; o bar Gorbatchopp onde se confraternizavam; e da sede do Partido, onde se organizavam politicamente para as suas missões.

O que atraia a juventude para o Partidão era a oportunidade de formação política e a possibilidade de atuação organizada na luta contra a ditadura. Nossos líderes estudantis eram muito bem formados, tinham capacidade de formular e de conseguir vitórias. Isso os tornava líderes admirados, e respeitados, com grande capacidade de atração de novos militantes para o partido. A forma como atuavam, organizadamente, despertava a curiosidade dos estudantes, sobre o que haveria por trás daquilo tudo. Tínhamos bons agitadores, bons propagandistas, bons organizadores, e eram dedicados ao estudo da política. Nos anos mais duros participavam aguerridamente do Partido, sem ao menos conhecer nossos dirigentes.

Os secundaristas do Partidão chegaram a dirigir, ao mesmo tempo, a União Campo-Grandense de Estudantes (UCE), a União Douradense de estudantes (UDE) e a União Sul-Mato-Grossense de Secundarista (USMES). Foram responsáveis pela organização de muitas entidades municipais secundaristas: em Ponta Porã, Paranaíba, Três Lagoas, Aquidauana, Corumbá, Rio Brilhante entre outras. Em congressos nacionais secundaristas, nossos jovens chegaram a levar 11 ônibus de delegados, o que resultou na participação de companheiros nossos na diretoria da União Nacional (UBES) e também na coordenação nacional partidária do movimento secundarista. 

  Narrou-me um dos nossos antigos secundarista um evento cinematográfico. Beto Cunha foi certo tempo presidente da Usmes e da UCE concomitantemente. Ocupado com trabalho no interior, tinha que chegar a Campo Grande para abrir uma reunião. Chovia muito, era difícil chegar a tempo, os participantes estavam quase desmarcando a reunião quando ele entra todo molhado e sujo de barro na sua moto na quadra da UCE, a la herói da Marvel, dizendo que tinha sido difícil a viagem, mas um comunista nunca deixava de cumprir um compromisso.

  Durante esse período nossos estudantes atuavam sempre sob a bandeira da Unidade, que era o rebatimento da nossa política de frente democrática durante a ditadura. Tinham capacidade de juntar os jovens de maneira pluralista e democrática. Contou-me um jovem dessa época que a primeira diretoria da USMES, tinha a participação de 52 membros, apenas 2 do Partidão. Ao final do mandato, tínhamos 50 deles filiados. Sem aparelhamento, funcionávamos como partido integrado.

  Havia um clima de camaradagem entre os nossos militantes que se manifestava em qualquer luta setorial que era travada. Eleger uma camarada nosso para alguma entidade era uma tarefa coletiva, que mobilizava o conjunto do partido. O movimento secundarista ajudava o movimento universitário e vice-versa. Ambos participavam das nossas outras disputas políticas, o que nos ajudava a construir campanhas vitoriosas. Pichações e colagens eram com eles mesmos.

Não raro, nossos secundaristas viajavam para o interior, ou para eventos nacionais, só com a passagem de ida. Dias depois voltavam sãos e salvos com dinheiro arrecadado no movimento e nas ruas. A venda de broches e cartazes soviéticos era uma fonte de arrecadação. Esse era o “ouro de Moscou” dos secundaristas. Durante um Festival Mundial da Juventude pela Paz, conseguimos enviar dois jovens para Moscou, o Beto Cunha e o Guilherme Leal. Muitas oportunidades foram abertas para nossos jovens participarem de cursos de formação política no Instituto de Ciências Sociais da União Soviética.

O partido funcionava como uma confraria, com laços afetivos de camaradagem. Era como uma família. Não raro eu recebia, durante as madrugadas, telefonema de pais preocupados com o atraso de seus filhos. “Seu doutor, são duas horas da madrugada e minha filha ainda não chegou em casa. Trate de me dar conta dela”, cobrou-me o pai, um velho comunista.

Grandes campanhas foram realizadas com a participação e a liderança dos nossos jovens. Entre elas me lembro da campanha do passe-escolar para os estudantes, o que foi uma grande conquista. Nesse período foi conquistada a participação estudantil no Conselho Estadual de Educação, para o qual indicamos Paulo Ribeiro Júnior, posteriormente o Carlos Roberto de Marhi (Neno),

  Também, tenho na memória a campanha pela meia-entrada nos cinemas, da qual cheguei a participar. Os estudantes montavam filas-bobas nas bilheterias, quando chega a vez deles, saiam da frente e entravam novamente no fim da fila. A Polícia Militar sempre era chamada para assustar os “baderneiros”. Era quando eu entrava, com a “autoridade” de vereador do partido do governador anotando na minha cadernetinha os nomes que os oficiais traziam escritos nos uniformes. Não tinha efetividade nenhuma, mas metia grande medo na tropa. Foram carteiradas do bem.

Fausto Matto Grosso

 (Este material foi escrito com ajuda memória dos seguintes jovens do Partidão: Orlando Rocha, Neno, Paulo Ribeiro Junior, Edilson Magrão, Eliane Sampaio, Hélio Sampaio e Beto Cunha - “In memorian” a Guilherme Leal).

Artigo ajustado em 08.02.2021 por sugestão do amigo Neno

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