sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

 

O DIA SEGUINTE AO IMPEACHMENT



Ao longo da nossa história republicana já tivemos 38 presidentes. Oito deles eram vice-presidentes que assumiram em consequência de mortes, renúncias, golpes ou impedimento dos titulares. São eles Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, Delfim Moreira, Café Filho, João Goulart, José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer. Preparemos então nosso espírito para um provável governo Mourão, como prevê a Constituição no caso do impeachment de Bolsonaro.

É claro que o presidente e o seu vice são frutos da mesma safra de 2018, como chama atenção o jornalista Élio Gaspari, mas um homem é ele próprio e as suas circunstâncias. As novas circunstâncias são de falência do país no plano econômico, social, sanitário e moral. É o Brasil à beira de um precipício, isso pode mudar muita coisa.

Razões legais para o afastamento do atual Presidente, já existem de sobra, fato que já começa a ser reconhecido em tribunais, principalmente no contexto da crise sanitária. Acontece que o impeachment não é apenas uma questão legal, mas sim uma decisão profundamente política. As diversas pesquisas de opinião ainda apontam uma divisão forte da opinião pública, rachada quase meio a meio. A tendência, entretanto é de crescer a força do impeachment, por aprofundamento da crise de confiança. O governo do capitão terrorista é desastroso no varejo e no atacado. Diante da pandemia, todas as suas ideias e iniciativas estavam erradas, como chama a atenção o mesmo Élio Gaspari.

Percebe-se, cada vez mais que Bolsonaro não tem condições de encaminhar a solução dos nossos problemas. Governos que não conseguem resolver problemas acabam sangrando e entrando em colapso. A sociedade não tem vocação para o suicídio coletivo. Já existem mais de sessenta pedidos de impeachment na Câmara, aguardando as condições políticas para o desenlace.

Está ficando cada vez mais claro que teremos pelo menos dois anos de tempo ruim pela frente quanto à Covid-19 e a economia, mesmo com sucesso da vacinação. A baixa confiança nesse governo vai erodindo sua base. Sua capacidade de produzir crises desnecessárias é infinita.

O descontentamento cresce nas redes e nas ruas. A própria base de apoio do Presidente na opinião pública começa a apresentar rachas, como mostra o recente pedido de impeachment feito em manifesto assinado por 380 lideranças ligadas a igrejas cristãs, incluindo católicas, anglicanas, luteranas, presbiterianas, batistas e metodistas, além de 17 movimentos cristãos.

Falta agora esse descontentamento refletir-se no Congresso Nacional, onde o Presidente ainda se garante. Não se sabe por quanto tempo. O parlamento, em situações de crise, costuma olhar o clima das ruas. Afinal todos dependem de voto popular.

O impeachment amadurece, mas ainda é necessário que as forças políticas e partidárias se entendam quanto ao futuro governo e a sua governabilidade. A situação demanda um pacto político a respeito da transição. É hora de cobrar juízo e ter prudência, nenhuma radicalização ajuda. Lembro que a pressa política é má conselheira e atrapalha o amadurecimento do processo. Caindo Bolsonaro quem, constitucionalmente, assume o poder é o general Mourão, a não que alguém queira se lançar em aventuras perigosas. 

Ninguém deve ignorar as lições da história. É preciso lembrar que Itamar, antes do impeachment fez acenos à oposição e Temer chegou até a anunciar um plano de governo.  As forças políticas não tem vocação para pular no escuro. Mourão tem que ser atraído por essa ideia de ser parteiro de um novo governo de transição (mais um), com governabilidade previamente garantida. Falta isso para juntar nova maioria no Congresso.

Fausto Matto Grosso

Engenheiro e professor da UFMS 

 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

 

A PENOSA PREPARAÇÃO DE UM ATLETA OLÍMPICO

(Este artigo fará parte do livro Histórias que ninguém vai contar)

Na Grécia Antiga as Olimpíadas eram realizadas em homenagem a Zeus, o deus dos deuses.  Seus vencedores eram tão festejados que se tornavam uma espécie de semideuses, porque pairavam acima dos homens comuns.

Nos velhos tempos da Guerra Fria, os Jogos Olímpicos tinham também um viés de luta ideológica. Estados Unidos e a União Soviética disputavam medalha por medalha como se fosse a defesa da sua superioridade enquanto regime político. Os atletas medalhistas tinham a aura de heróis nacionais.

Em torno dos medalhistas olímpicos foi se criando uma mística de super-homens. Afinal os atletas tinham que se abster de muitos prazeres corriqueiros da vida, na alimentação e no uso de álcool. Enfrentavam treinamento diário penoso e conviviam com as dores do limite do corpo humano.

Lá pelos anos 1980, recém-saída da Olimpíada, uma delegação de ginastas e bailarinos da União Soviética, cheios de medalhas no peito, veio ao Brasil para participar da festa do jornal Voz da Unidade, do Partidão. Como uma iniciativa de arrecadação de recursos, vieram também à Campo Grande. Foram dois dias de eventos no ginásio Moreninho, da UFMS. A capacidade do ginásio, de 800 pessoas, foi insuficiente para receber todos os interessados, ficou gente para fora nos dois dias de apresentação. Mais de duas mil pessoas assistiram os eventos.

Como parte da recepção aos quatorze visitantes, foi oferecido um jantar em minha casa, com a presença de mais alguns convidados. Na chegada deles, o nosso presidente Carmelino Rezende, como de praxe, fez o discurso de saudação, foi um discurso de emoção. Falou do papel da União Soviética no mundo, dos seus feitos contra o nazismo e da sua luta pela paz no mundo, da sua referência para a luta dos trabalhadores. Qual não foi a nossa surpresa, quando o chefe da delegação respondeu à nossa saudação política com um discurso esportivo. Algo parecia estar errado na União Soviética.

  Servidas as bebidas, uísque, cerveja e vodca, a festa pegou fogo. Parecia uma festa de homenagem a Baco, o deus considerado o protetor do vinho, da boêmia, da festa e da gula. O estoque precisou ser reforçado. Nada lembrava a austeridade suposta a atletas olímpicos medalhistas de ouro.  A comilança também foi assustadora nada parecia um jantar de medalhistas olímpicos. Alguns foram sentar-se na varanda da casa, que terminava em um talude de grama. Um deles, para desespero da minha mulher, ficava empinando a cadeira. De repente caiu para trás rolando pela rampa de grama até parar próximo à piscina. Não fiquei sabendo a modalidade esportiva dele.

A confraternização foi geral, com os convidados interagindo com os atletas. Na maioria dos casos, usavam o dialeto da mímica. Um dos atletas ficou encantado com o correntão de ouro de um dos convidados, um comerciante árabe, fiel contribuinte do Partido. Não se sabe o que falaram através da mimica, mais o fato é que este tirou seu correntão e colocou-o no pescoço do russo, como presente.

Terminando a festa estavam todos bêbados. Um deles veio em minha direção batendo uma garrafa de uísque de baixo do braço e falando em russo. Nada entendi, mas o simbolismo do gesto era claro. Falei que podia levar a garrafa. Ufa!

Fausto Matto Grosso

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

 

AS AGRURAS DO CONSUMIDOR



  É difícil encontrar alguém que já não tenha passado por muita raiva na hora de ser atendido nos teleatendimentos de empresas prestadoras de serviços. Seja por telefone ou por outros meios digitais, o tempo perdido é enorme e, não raro, tem que se fazer repetidas tentativas, tornando ainda mais penosa a vida do reclamante.

  O consumidor é mal atendido nesses serviços, seja por inadequação dos sistemas, seja por falta de treinamento/qualificação dos operadores. Os Procons estaduais mantém um ranking dos piores prestadores de serviços, os mais reclamados. No topo estão, normalmente, os serviços de energia elétrica, de água, empresas de telefonia, os bancos e as grandes redes de varejo.

  Apesar de os direitos dos consumidores terem status constitucional e serem regulados por diversas leis, decretos e portarias, os serviços de atendimento ao consumidor (SACs) fazem clara afronta a todo o sistema de ordenamento jurídico existente.

  Pela legislação, a empresa deve garantir, no primeiro menu eletrônico e em todas suas subdivisões, o contato direto com o atendente. Sempre que oferecer menu eletrônico, as opções de reclamações e de cancelamento têm de estar entre as primeiras alternativas. No caso de reclamação e cancelamento, é proibida a transferência de ligação e todos os atendentes deverão ter atribuição para executar essas providências. As reclamações terão que ser resolvidas em até cinco dias úteis. O consumidor deverá ser informado sobre a resolução de sua demanda. O pedido de cancelamento de um serviço deve ser imediato.

Ainda, a legislação exige que para serviços ininterruptos, o atendimento deverá funcionar 24 horas por dias, sete dias por semana. Deverá ser oferecido ao consumidor um número único de telefone para acesso ao atendimento. É proibido, durante o atendimento, exigir a repetição da demanda do consumidor. Haverá um prazo máximo de espera para ser atendido. Ao selecionar a opção de falar com o atendente, o consumidor não poderá ter sua ligação finalizada sem que o contato seja concluído. Só é permitida a veiculação de mensagens publicitárias durante o tempo de espera se o consumidor permitir. O acesso ao atendente não poderá ser condicionado ao prévio fornecimento de dados pelo consumidor.

  Vivêssemos essa realidade, o consumidor brasileiro, se sentiria no melhor dos mundos, como foi a intenção de Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor, um dos primeiros do mundo. Entretanto, vivemos no Brasil o desrespeito aos direitos e a indignação do consumidor. Essa é uma das tais leis que não pegaram. A principal responsabilidade por essa situação é dos órgãos de regulação e de fiscalização aos quais falta proatividade. De que vale os rankings dos piores prestadores de serviços, se não há providencia sistemática e preventiva contra eles. A Constituição atribui ao Estado a defesa do consumidor, entretanto problema é jogado no colo do indefeso consumidor individual.

Existe também o problema do atendimento por robôs com inteligência artificial. Esse caminho parece ser inevitável em termos futuros, mas tem que ser muito melhorado para ser colocado em prática. Necessita a adaptação à cultura média dos consumidores, e principalmente àqueles que ainda não estão ajustados à cultura digital, e que perdurarão ainda por muito tempo.

Cada consumidor individual é único e demorará muito para que a inteligência artificial assim o enxergue. Toda tecnologia é bem vinda para melhorar a vida do indivíduo e não para piorá-la. O consumidor, que antigamente sempre tinha razão, passou a ser uma vítima sem direitos.

  Pesquisas apontam que os consumidores só se considerariam satisfeitos se fossem tratados como pessoas únicas e reconhecidas, fossem acarinhadas e tivessem suas expectativas atendidas. Só querem se sentir amados.

Fausto Matto Grosso

Engenheiro e professor da UFMS

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

 

EXILIO ILUSTRE PELA NOROESTE

(Este artigo será publicado no livro Histórias que ninguém vai contar)

A repressão mais cruenta da ditadura militar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) não ocorreu de 1964, mas sim 10 anos depois, em 1974 e 1975. O governo militar já havia derrotado a luta armada e, pressionado pela crise, começou o que chamava de abertura lenta, gradual e segura, com Geisel. Para isso, tinha que enfrentar a esquerda que atuava na frente democrática contra a ditadura fazendo a luta política. Era preciso extirpa-la para poder abrir o regime de forma a não perder o controle.

  Nessa repressão, além da cassação de deputados ligados ao PCB, Nelson Fabiano Sobrinho e Marcelo Gato abrigados no MDB, foram assassinados o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Filho. Assassinaram também, mais de um terço dos membros do seu Comitê Central. Nessa circunstância, sem poder conduzir a luta, dentro do Brasil, a direção do Partidão resolveu retirar do país grande parte dos dirigentes nacionais, enviando-os para o exterior. Cada um teve que montar seu esquema próprio de saída do país, por suspeita de que o esquema de fronteira estava infiltrado.

  Salomão Malina era uma dessas grandes figuras que tiveram que partir para o exterior. Ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, onde se alistara como voluntário, já tendo sido condecorado, por sua bravura, com a Cruz de Combate de Primeira Classe, a maior condecoração do Exército Brasileiro. Malina, que já havia passado vários anos preso e já experimentara 35 anos na clandestinidade, teve que se refugiar em Portugal. Anos depois, anistiado, foi reformado como tenente-coronel do Exército.

  A saída dele se deu por Ponta Porã, em 1975, acompanhado de outro dirigente nacional, Givaldo Siqueira. Contou com o apoio local do partido, especialmente de Onofre da Costa Lima Filho, numa operação super-reservada. O esquema da sua retirada contou com grande ajuda de comunistas paraguaios, entre eles Ricardo Grando e sua esposa Dona Úrsula. O casal, refugiado no Brasil, era dono do conhecido restaurante Gato Que Rí, em Campo Grande. Dona Úrsula simulou ser esposa de Malina, o que ajudou a fazer a travessia da fronteira em Ponta Porã. O acesso a essa cidade se deu pelo ramal ferroviário da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil numa rota improvável que nunca era usada, por causa do tráfico de drogas.

  Em seu retorno, depois da anistia, Malina, agradecido, nunca deixou de visitar o casal, a cada vinda a Campo Grande, da mesma forma que, como ex-pracinha visitava a sede da Associação dos ex-Combatentes da Segunda Guerra.

  Após sua saída do Brasil, Malina, foi para a Argentina, depois  para a Colômbia onde os soviéticos o socorreram com documentos que lhe permitiram o exilio europeu. Assentado em Portugal, perambulou por vários países europeus onde os Partidos Comunistas conviviam em democracias. Malina lia jornais em cinco idiomas. Um período em Moscou, como sensibilidade crítica, ajudou a formar sua cabeça arejada que propiciou a transformação do PCB em Partido Popular Socialista (PPS), tornando Roberto Freire seu sucessor. Trouxe também o gosto pelo vinho verde, que muitas vezes compartilhamos em encontros de boa conversa em São Paulo ou Brasília.

Fausto Matto Grosso

 (ajustado em 07.01.2021 por indicação do amigo Ascário Nantes)

sábado, 2 de janeiro de 2021


 O MOVIMENTO ANTIVACINA


  Atreva-se a conhecer. Esta frase sintetiza o desafio lançado pelo Iluminismo durante o século XVIII na Europa. O Século das Luzes foi um período em que se opôs a ciência à ortodoxia religiosa, entre as quais as teses místicas que afirmavam que as doenças eram castigo divino. A partir dessa época, a razão foi colocada como principal fonte de autoridade e de legitimidade das ideias. Nesse período, começaram a serem defendidos os ideais de liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, e separação Igreja–Estado.

  A escuridão dos tempos atuais clama por nova iluminação, com a defesa da ciência e do conhecimento racional como meio de superação de preconceitos e ideologias tradicionais.

  Um dos sinais da escuridão é o atual movimento antivacina, que defende que os imunizantes não protegem contra as doenças e podem colocar a saúde em risco.  A Organização Mundial de Saúde (OMS) em recente relatório afirma ser tal movimento um dos dez maiores riscos à saúde global, sendo tão perigoso quanto os vírus mais temíveis.

  O movimento antivacina tem crescido no mundo e no Brasil. Um dos marcos dessa explosão foi a publicação de um estudo na conceituada revista Lancet em 1998 de autoria do médico britânico Andrew Wakefield que relacionava a vacina tríplice viral contra caxumba, sarampo e rubéola com a ocorrência de autismo em crianças. Logo depois, o artigo foi desqualificado por inúmeros cientistas e pela própria revista. Mas depois que algo dessa gravidade chega à população, fica difícil desfazer o estrago. Até hoje, esse artigo desqualificado de Wakefield é utilizado e generalizado por inúmeros grupos antivacina. É provável que isso esteja por trás do retorno de inúmeras doenças que já foram consideradas praticamente erradicadas.

  Os negacionistas da ciência formam um grupo bastante heterogêneo. Dentro dele estão desde os ingênuos e preguiçosos mentais até aqueles que ganham dinheiro com as crendices do povo empurrando praticas médicas alternativas duvidosas ou falsas, como as curas herbalistas, homeopáticas, quiropraxistas e neuropatas que se oferecem em sites de grande apelo. O movimento antivacina tornou-se um grande negócio, em um momento de comoção mundial e avanço do populismo.

  No Brasil, recente pesquisa da divisão de estudos estatísticos da revista digital Poder 360, aponta que entre julho e dezembro de 2020 o número daqueles que tomariam vacina passou de 85% para 60% e o grupo dos que não se vacinaria passou de 8% para 28%, mostrando o estrago causado pelo movimento antivacina.

  A sociedade brasileira precisa reagir mais enfaticamente. As redes científicas e profissionais tem que assumir responsabilidade com o país. Os cientistas precisam se mostrar mais e ampliar seu diálogo com a sociedade, inclusive através das mídias sociais, onde os antivacinas trafegam com desenvoltura. Cada fake news tem que ser desmoralizado com a palavra da ciência e da razão.

  Os provedores de mídias sociais, institucionalmente, devem ser mobilizados a cumprir um papel responsável, enfrentando o domínio do império das poderosas mídias antivacinas. O Supremo Tribunal Federal, em julho do ano passado mandou bloquear as contas dos aliados de Bolsonaro no Twiter e Facebook "para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática". Da mesma forma, e com transparência, é preciso banir as mensagens antivacina, que constituem um crime contra a humanidade.

  A situação é tão grave que o próprio Ministério da Saúde o criou um serviço WhatsApp, para vigiar e esclarecer as mensagens fake news quanto à pandemia. É uma necessidade tornar esse canal mais proativo e acessível à população.

Maria Augusta Rahe Pereira, médica

Fausto Matto Grosso, engenheiro