sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

INTOLERÂNCIA

"Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada." (Vladimir Maiakovisk)
A Câmara Municipal de Campo Grande viveu recentemente um episódio patético, o enorme conflito relativo a um singelo projeto de aprovação de um título de utilidade pública para a Associação das Travestis de Mato Grosso do Sul. Fosse uma dessas entidades fantasmas criadas, por alguns políticos, para receberem emendas parlamentares, que eles mesmos elaboram, valeria a justa indignação da cidadania.
O episódio merece ser comentado pelo que tem de simbólico e de emblemático de um comportamento de intolerância que surge quando se mistura religião com política, o chamado fundamentalismo.
Todos conhecemos o que isso significa de irracionalidade no Oriente Médio, na Irlanda do Norte, no Paquistão e em outros cantos do mundo, ou indo mais longe, o que significou a perseguição dos cristãos pelos romanos e a Inquisição. Já pelo contrário vale lembrar o exemplo do deputado comunista Jorge Amado que, na Constituinte de 45, conseguiu aprovar a liberdade religiosa no Brasil, livrando da perseguição policial a umbanda e o candomblé, ritos religiosos dos negros pobres de então.
O Brasil “cordial” tem que se alertar para o fato de que a intolerância fundamentalista é um perigo sempre presente, que tem se traduzido em veto à ciência, à diferença, à liberdade e ao caráter laico do Estado.
A democracia das maiorias foi uma vitória da civilização, o desafio que se coloca agora é o da incorporação democrática das diferenças. Reconhecer o outro para incorporá-lo no jogo democrático e na organização da sociedade. Sociedades excludentes são sociedades de conflitos. Grupos desorganizados, sem interlocutores definidos, são massas de manobra para os navegadores do caos social e da enganação política.
O que os travestis fizeram foi exercer o legítimo direito de organização, tal como qualquer outro segmento da sociedade. Não precisaram pedir para ninguém, como acontece em uma sociedade democrática. E no caso específico, a Associação passou a ser uma interlocutora responsável e importante do poder público nas questões de saúde, segurança, cidadania, entre outras. Agora querem apenas que isso seja reconhecido, em uma lei, como ações de utilidade pública. Só isso.
Inutilidade pública é a intolerância. Perigoso é o fundamentalismo que um dia pode nos pegar também.

Maria Augusta Rahe Pereira,
médica
Fausto Matto Grosso,
engenheiro e professor da UFMS

faustomt@terra.com.br