segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

 

CÂMERA DISCRETA

(Este artigo será publicado no livro "Histórias que ninguém vai contar")




Após muitos anos de clandestinidade o Partidão ressurgiu à luz do dia em 1985. Foi um momento muito importante para democracia brasileira e muito festejado pelos comunistas.

Era um ano eleitoral. Imediatamente o partido em Mato Grosso do Sul, começou a se preparar para lançar candidato a prefeito em Campo Grande. Era preciso mostrar a nossa cara para a sociedade.

  Uma das primeiras providências foi adquirimos uma câmera de TV no mercado paralelo top, para garantir a autonomia da nossa campanha. O encarregado da tarefa foi Carmelino Rezende. Importamos por conta própria um aparelho top de linha, com uma inovação tecnológica que era os tais três tubos. Nem as TVs locais ainda a possuíam. Um estúdio de filmagem foi montado nos fundos do escritório de Carmelino. A câmera nos custou US$ 20.000, doados do próprio bolso por Onofre da Costa Lima Filho.

  Antes ainda de oficializarmos nosso candidato Euclydes de Oliveira, já começamos a trabalhar a elaboração do plano de governo. Eu fui seu vice-prefeito. Naqueles tempos duas cidades se destacavam, no plano nacional, como gestões democráticas e inovadoras, Lajes (SC) e Piracicaba (SP). Despachamos imediatamente Mário Sérgio Lorenzetto para conhecer a experiência desta última.

  Nossa campanha na televisão foi fantástica, dirigida por Flávio Teixeira, com apoio de Dante Filho e Carmelino Rezende, políticos, com vocação para marqueteiros. Também atuou o eficiente cinegrafista Alci da Costa Leite. Era voz corrente que tínhamos o melhor candidato e o melhor programa de TV. Só duas eleições depois é que o MDB atingiu o nível técnico da nossa campanha de TV.

  Buscando pegar uma carona no sucesso da nossa campanha, o candidato do PTB, Ibrahim Zaher, resolveu polarizar conosco. Todo dia partia para cima de nós, alertando o eleitor que “cumunista é igual belha, chega perto do ouvido da gente, fazem zunzum, passam mel na nossa boca, as pessoas se encantam e depois, metem o ferrão na gente, zum!”. PCB e PTB davam show de audiência todas as noites.

  Buscando atingir nossa credibilidade, dizia Zaher que nossa campanha era financiada pelo governo Wilson, e que a própria câmera que usávamos era da Sanesul. Aí sentimos o golpe: veio o temor de que a Polícia Federal viesse a conferir a irresponsável denúncia e a apreendesse e ainda que poderia ser prejudicada a gestão de Frederico Valente, amigo do partido, como presidente da Sanesul.

  Foi um desespero total, precisávamos legalizar a câmera com uma nota fiscal. Foi um corre-corre. Como nenhum amigo nosso, seminarista, podia nos ajudar, acabamos caindo nas mãos do bicheiro e carnavalesco Castor de Andrade, que tinha sido colega de Faculdade de Direito de um camarada nosso. Contatado, ele nos indicou o telefone de uma pessoa que podia nos ajudar e imediatamente, em voo da madrugada, despachamos para o Rio, o companheiro Carmelino e o câmera operoso Alci Costa Leite. Lá chegando, conta-nos nosso emissário que foi atendido em um estúdio cheio de gente mal encarada, e foram então encaminhados para o gabinete do proprietário, sim, nada mais, nada menos que Jece Valadão, o mais famoso cafajeste das telas do país. Era ele que operava no ramo de notas frias na área de equipamento de comunicação. Ele, antigo simpatizante do partido lá no Espírito Santo, ficou emocionado ao saber da finalidade, nos cobrou US$5.000” e se dispôs a repassar uma nota fiscal, emitida por sua empresa, para regularizar nosso equipamento.”.

  Essa nossa câmera só serviu para boas causas. Terminada a campanha, foi emprestada para filmagem do primeiro programa nacional de televisão do PCB e finalmente doada para a campanha Freire Presidente. Aí sumiu nos tempos, entrando para a história.

Fausto Matto Grosso

(ajustado em 29.12.2020 por sugestão do amigo Francisco Hardy)

sábado, 26 de dezembro de 2020

 NÃO ERAM DO RAMO 

(Este artigo será publicado no livro "Histórias que ninguém vai contar")



  Construir e “dar assistência” ao Partido no interior sempre foi um trabalho difícil e desafiador, principalmente nos velhos tempos. Tinha-se que vencer longas distâncias, muitas vezes de ônibus, hospedar na casa de companheiros, não raro, usando dinheiro do próprio bolso. Mas era também prazeroso e deixava boas lembranças e muitas amizades.

  Certa vez fui a Corumbá, tentar reorganizar antigos militantes. Tinha o Adolfo Cunha, poaeiro, o marceneiro Guinemer Gomes da Silva, vulgo Juquinha, o Tutu Pedrosa, ex-deputado do PCB na constituinte de 1947. Era necessário aproximá-los da nova militância Celso Philbois, Domingos e Wilma Sabóia, entre outros. Sempre sobrava tempo para uma visita ao ex-deputado Percy de Barros por Deus, amigo do partido.

  Levei na bagagem alguns exemplares do jornal clandestino “a Voz Operária”, um livro recente do Partido e também um livro sobre o congresso de um partido do Leste Europeu, seria a Bulgária? Ou seja, tudo material pouco inocente.

  Chegou a hora de voltar e veio-me a preocupação com a viagem de retorno. Corumbá era uma fronteira de drogas e a polícia costumava ser muito atenta. Por preocupação, na praça central da cidade, deixei o que sobrou do material, guardando apenas um exemplar de cada livro, o que poderia ser justificado como material pessoal de leitura. Em linguagem do ramo, desovei o excesso comprometedor.

  Embarquei no ponto do ônibus, com a inspeção de rotina. Estava salvo. No meio da estrada, chegou com todo o barulho de praxe, uma patrulha da Polícia Federal que no meio do chão de pedra e poeira fez que todos baixassem as bagagens. Começaram revistando a mochila de um casal de jovens estrangeiros nórdicos, provavelmente. Acharam um soco inglês, e já começaram ali mesmo o espancamento do rapaz que tentava escapar de cata cavacos.

  Na minha mochila acharam os dois livros. Folearam ambos minuciosamente, com se quisessem achar algo escondido. Nada encontraram. Mandaram-me abrir minha bolsa de couro, pediram que eu abrisse a carteira.  Lá se interessaram por uma folhinha verde que estava entre os documentos. Dei uma explicação que aquilo era uma folha de louro que minha mãe, no fim de ano, colocava na carteira dos filhos para que enriquecessem no ano seguinte. Levaram a folhinha para averiguação para os policiais mais experientes, mordiam, cheirava, molhavam com um líquido. Acabaram aceitando a minha versão.

  Sorte que não eram do ramo, não estavam interessados em questões políticas. Pude então seguir minha viagem aliviado.

Fausto Matto

(revisado em 28.12.2020)


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020


 

EMPREENDORISMO E TORTURA

(Este artigo fará parte do livro "Histórias que ningúem vai contar")



  O financiamento público da atividade partidária sempre foi uma questão muito polêmica, tal qual o imposto sindical para financiar os sindicatos. Mas para o PCB, que viveu grande parte de sua vida na ilegalidade, prevaleceu, por muitos anos, o esforço arrecadatório próprio. Seu sistema de sustentação financeira era montado a partir de contribuições pessoais dos militantes, de aliados e de um grande número de simpatizantes. Existiam também as campanhas especiais de finanças, normalmente anuais. Mas o sufoco financeiro sempre foi muito grande.

  No início dos anos 1970, durante o Governo Médici, o Instituto Brasileiro do Café (IBC) lançou o Programa de Renovação da Cafeicultura Brasileira, cujo agente financeiro era o Banco do Brasil. Eram concedidos empréstimos a juros subsidiados para compra de terra e implantação de lavoura de café. Foi a época da corrida do ouro em direção a São Gabriel do Oeste. O Partidão não perdeu a oportunidade, mobilizou um grupo de advogados, para engajarem-se no programa, em benefício das finanças partidárias. Nosso próprio Secretário de Finanças, Ascário Nantes era um dos participantes do projeto.

  Nessa ocasião, vivia aqui, em Mato Grosso do Sul, clandestinamente, um dirigente do Comitê Central, de nome de guerra Tibúrcio. Ex-líder sindical em Curitiba, era um dos poucos dirigentes nacionais que não tinham ido para o exterior. Foi então colocado para a operacionalização do empreendimento, que ficava na Serra da Bodoquena, no distrito de Miranda denominado Campão, hoje município de Bodoquena.

 A lavoura foi tocada por uns tempos, chegou a ter 175 mil pés de café abrigando 13 famílias, ao total 150 pessoas, mas logo a atividade entrou em declínio em toda a região e levou de arrastro, também o nosso empreendimento.  A pá de cal foi a grande geada de 1975 que acabou com os cafezais na região e foi seguida pela febre de plantio de soja. Não deu certo, mas bem que tentamos.

  De saldo ficou o relacionamento com o camarada e amigo Tibúrcio Melo. Em 1975, a repressão o encontrou no meio do cafezal e ele foi mandado para o DOI-CODI, em São Paulo, juntamente com o nosso companheiro Acelino Granja. Nesse mesmo local se encontrava Vladimir Herzog. Ambos foram torturados barbaramente pelo delegado Fleury. Granja foi destruído fisicamente. Tibúrcio que estava doente de blastomicose, uma doença causada por fungos, chegou a pesar 38 quilos, quando o então médico Harry Shibata atestou que ele não aguentaria mais tortura, sendo então liberado para tratar-se. Nem o seu próprio nome Tibúrcio entregou, consta que foi processado com o nome de guerra, atestado por documentos falsos perfeitos.

  Recuperado fisicamente, após uns tempos em São Paulo, onde o encontrei pela última vez, voltou para Curitiba, com o nome verdadeiro de Espedito de Oliveira Rocha, tornando-se um consagrado escultor em madeira.

  Fausto Matto Grosso.

(atualizado em 26.12.2020)

  

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

(Este artigo fará parte do livro Histórias que ninguém vai contar)

LUDIO E O PARTIDÃO



Com a vitória de Wilson Martins para o governo, em 1982, cabia-lhe fazer a indicação do prefeito da capital. Essa era a regra herdada da ditadura, já que as capitais eram consideradas áreas de segurança nacional e nestas não havia eleições diretas.

  Wilson poderia escolher qualquer um, ao seu livre arbítrio, mas o grupo do PMDB autêntico, liderado por Juarez Marques Batista e Valter Pereira, queria fazer a indicação, assim como os oriundos do PP pleiteavam a indicação de Antônio Mendes Canale. Por sua vez, Wilson já pretendia indicar Ludio Coelho, por retribuição ao apoio dos pecuaristas durante a campanha. Entretanto, precisava viabilizá-lo politicamente.     Com sua visão de frente democrática, os pecebistas também defendiam, como Wilson, que quem tivesse participado da campanha deveria participar do governo.  Além do mais, avaliavam que era importante aliviar a pressão e a desconfiança dos setores conservadores do estado com relação ao governo de centro-esquerda que estava se implantando.

Depois de muita pressão, Wilson resolveu ouvir o partido.  Antes da chegada ao governo, os diretórios do PMDB tinham pouca serventia para os políticos, razão pela qual os comunistas ocupavam, folgadamente e sem contestação, um terço das suas vagas do diretório municipal da Capital

Em uma convenção informal tumultuada, Ludio disputando com mais dois candidatos, saiu-se consagrado como o mais votado dos pretendentes, com a ajuda decisiva dos comunistas.

Assim Ludio chegou, à Prefeitura em 1983. Como novo prefeito teve uma dificuldade inicial para se se firmar, chegando a receber uma enorme vaia no comício das diretas em 1984. Ao final do seu governo, estava consagrado como um grande prefeito. Ficou conhecido por declarações e atitudes quase folclóricas, pelas histórias que ele mesmo inventava e pelo uso da linguagem popular. Seu chapéu de produtor rural, que não tirava da cabeça, virou seu símbolo.   A escolha de Wilson se revelou acertada.

  Seu governo foi de grande influência do PCB, que indicou o seu secretário de obras José Eduardo Tiberi, engenheiro do Dersul. Mas também indicou diversos outros quadros técnicos não pertencente ao partido, que qualificaram o governo em áreas estratégicas. Durante o seu governo o partido também tinha dois vereadores na Câmara Municipal, Marcelo Martins e eu.

  Esse período ficou marcado pelo conflito que existiu entre a gestão Ludio e o setor de obras do Governo Wilson, este dominado por concepções herdadas do “milagre brasileiro”, de obras faraônicas. Dentro do próprio governo existiam outras secretarias e lideranças que contestavam o grupo ligado ao Marcelo Miranda. A título de exemplo, foi essa resistência que salvou nossos córregos urbanos da Capital do envelopamento completo com concreto.

  Mas, Ludio Coelho tinha outros planos, queria ser governador do Estado. No PMDB o nome de Marcelo Miranda já estava à postos para essa disputa, razão pela qual Ludio saiu do partido e foi para o PTB. Nessa nova disputa, o PCB, que nacionalmente fazia parte da Aliança Democrática (PMDB, PFL, PCB e PCdoB), saiu coligado com o PMDB. A propósito, foi o senador Marco Maciel, em nome de Sarney, que interviu junto a Marcelo Miranda para que fosse feita a coligação com os comunistas.

  Foi uma disputa selvagem. Para nossa surpresa Ludio começou a fazer uma cerrada campanha anticomunista contra Marcelo Miranda. O velho fantasma ainda estava vivo. Nesse contexto, minha campanha de deputado estadual ganhou tempo de TV desproporcional. Parecia tempo de senador. Minha tarefa era chamar o Ludio de ingrato. Não fui eleito deputado, afinal não era bom de voto, mas o velho e bom Ludio Coelho também não conseguiu seu intento. Deve ter sido castigo pela ingratidão.

Fausto Matto Grosso

 


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

 

IDH E FELICIDADE, NADA A COMEMORAR



  Na semana passada, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou o relatório sobre o índice de desenvolvimento humano (IDH) de 189 países, obtido com dados de 2019.

  Ao longo da história econômica, a ideia de desenvolvimento ou progresso quase sempre esteve ligada a de crescimento econômico, daí a sua medição ter sido durante muito tempo o estoque em ouro e metais preciosos e mais recentemente o PIB (Produto Interno Bruto). Mas a produção de riqueza muitas vezes implica em externalidades como o impacto ambiental e a distribuição desigual desta entre as pessoas. Além disso, é imperfeita a correlação entre indicadores de renda e os padrões efetivos de bem-estar da sociedade.

A partir dessa realidade é que surgiu o conceito de desenvolvimento econômico e social no qual o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é um dos principais indicadores. Aí são consideradas três variáveis principais: a saúde, a educação e a renda da população.

Complementarmente, o PNUD calcula também IDH-P que leva em conta as emissões de CO2 e a pegada ambiental, o IDD (Índice de Desigualdade) e o IDG (Índice de Desigualdade de Gênero) que pioram ainda mais a situação do Brasil.

  O relatório do IDH deste ano foi construído com dados de 2019, ou seja, anteriores ao COVID-19. O Brasil obteve o IDH de 0,765 (quanto mais perto de 1, melhor), crescendo 0,003 em relação ao ano anterior, o que caracteriza “crescimento lento”. Outros países cresceram mais rapidamente, o que fez nosso país cair da 79ª para 84ª posição. Ficamos para trás no contexto mundial. Nada pois a comemorar. O que aconteceu neste ano de pandemia, segundo analistas, deve empurrar o Brasil ainda mais para baixo. Lê-se no relatório que “A covid-19 pode ter empurrado cerca de 100 milhões de pessoas para a extrema pobreza, o pior revés em uma geração”.

  O fraco desempenho do Brasil deveu-se a falta de avanço na educação, a média de anos de estudos ficou em apenas oito anos. A expectativa de vida e a renda per capita também avançaram muito timidamente em 2019.

  Tem surgido nos últimos anos indicadores que melhor medem os resultados humanos do desenvolvimento. Em 2011 a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução convidando os países membros a medirem a felicidade de seus povos e utilizar esses indicadores na construção de suas políticas públicas, substituindo oficialmente o indicador de produto interno bruto pelo da felicidade interna bruta. O primeio-ministro do Butão presidiu a Assembleia, pois era o único país que já adotava essa prática. De 2013 em diante começaram a ser produzidos relatórios de acompanhamento.

Atualmente, a cesta de indicadores de felicidade bruta inclui: PIB per capita real, assistência social, expectativa de vida saudável, liberdade para fazer escolhas, generosidade e percepções de corrupção.

O ranking da felicidade é liderado por Noruega, Dinamarca, Islândia, Suíça e Finlândia, construídas pelo projeto social democrata. Iniciamos a participação do nosso país em 2012, em 25º lugar, em 2016 ficamos em 17º posto. De lá para 2020, entretanto, a felicidade do brasileiro caiu gradativamente. Hoje estamos em 32º lugar.  Segundo os autores do estudo, os motivos para isso foram os problemas sociais e políticos, sobretudo a falta de generosidade e a corrupção, que impactou "negativamente na sensação de bem-estar e de satisfação com a vida" da população. Nem o futebol e o carnaval nos salvam.

Fausto Matto Grosso

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

 (Um livro escrito página a página)

FIM DE UM MANDATO


  No ano de 1982, ainda durante a ditadura, ocorreu a primeira eleição direta para governadores. Antes disso, eles eram escolhidos por colégios eleitorais de exceção.

  Naquele ano, houve eleições para governadores, senadores, deputados federais e estaduais, e vereadores. Nas capitais, então consideradas áreas de segurança nacional, os prefeitos eram de livre indicação dos governadores de estado.

  Em Mato Grosso do Sul, foi eleito governador, Wilson Barbosa Martins, tendo como vice Ramez Tebet. Para o Senado, foi eleito Marcelo Miranda , o PMDB elegeu quatro deputados federais, e doze deputados estaduais, a metade das vagas em disputa em cada Casa.

  Para a Câmara Municipal da capital, o PMDB elegeu 14 dos 21 vereadores, dando uma histórica virada na política municipal. O quadro      partidário na época tinha claro perfil ideológico, oposição ou apoio à ditadura.

  O PCB, então abrigado dentro da legenda do PMDB, tinha se preparado para essa disputa. Organizadamente lançou dois candidatos o advogado Marcelo Barbosa Martins, de sobrenome político ilustre (seu tio candidato a governador e seu pai, candidato a deputado federal) e eu,  engenheiro e professor da UFMS. Sem grande vocação para a articulação política eu era, dentro do partido, reconhecido como articulador orgânico, um organizador, característica que o partido pretendia para sua organização na sociedade civil.

  A campanha dos candidatos do PCB era um projeto partidário. O trabalho foi inteiramente de militância. O grupo de advogados, com Onofre Costa Lima Filho e Carmelino Rezende à frente coordenou a campanha de Marcelo, agregando também grande parte da nossa militância estudantil. A minha campanha teve a coordenação de Ricardo Bacha e Nilson Theodoro de Farias. Custo pessoal praticamente zero. Chegou ao ponto de o partido fornecer suporte financeiro pessoal, para que eu pudesse abandonar meu trabalho profissional, que estava criando dificuldades para a dedicação integral à campanha.

  A eleição foi um sucesso para o PCB, Marcelo ficou em terceiro lugar, com 4.473 votos e eu em sétimo lugar com 2.275 votos em uma população três vezes menor que a atual. Em proporção à população atual equivaleria hoje a uma votação três vezes maior, cerca de 13 mil votos e 6.800 votos, respectivamente. O vereador mais votado de Campo Grande neste ano de 2020 teve 6.200 votos, em um quadro de grande pulverização partidária e individualismo político.

  Nosso mandato de seis anos foi destacado e mereceu grande reconhecimento público, o que me garantiria reeleição considerada praticamente certa em 1988.

  Coerentemente com a nossa política nacional de frente democrática, planejamos sair coligado com o PMDB, principalmente porque seu candidato seria Plínio Martins, um dos nossos principais aliados. Tudo foi acertado com suas principais lideranças, inclusive com o ex-Governador Wilson Martins. Eis que, nossa convenção já tendo decidido pela coligação, foi surpreendida pela recusa da convenção peemedebista, de coligação com o PCB. Tratava-se de uma rebelião dos candidatos à vereador do PMDB, pois esta coligação garantiria um mandato para o PCB, uma vaga a menos para o Partido.

  Essa desarrumação repentina nos levou à improvisação de uma candidatura própria de última hora. Nosso candidato a prefeito Alan Pithan obteve menos de 1000 votos. Nossa chapa de vereadores não atingiu o cociente eleitoral.

 Muitos pemedebistas gastaram décadas tentando nos explicar o inexplicável. Como resposta política imediata, retiramos nosso companheiro Carmelino Rezende da Secretaria do Trabalho de Marcelo Miranda. Nesse episódio, revelou-se um episódio de baixa política, que manchou a importância histórica do PMDB. Enquanto pensávamos na política nacional da transição democrática, aqui na província pensava-se em uma vaga de vereador.

Fausto Matto Grosso


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

 

(Um livro escrito página a página)

REATAMENTO COM CUBA



  Durante a ditadura, foram interrompidas as relações diplomáticas entre o Brasil e Cuba.  Nos anos 1980, havia forte pressão de opinião pública a favor do reatamento. Intelectuais, artistas e militantes políticos começaram a assumir a visita à ilha, ao retornarem ao Brasil, causando burburinhos nos aeroportos, como foi a detenção de Chico Buarque e do dissidente comunista Davi Capistrano Filho, que viria a ser prefeito de Santos.

  Trabalhava pela aproximação entre os dois países, o diplomata cubano Sérgio Cervantes, que atuava no Brasil nas relações comerciais, principalmente na área do café e do açúcar, encarregado do Departamento de Américas do PC Cubano.  Nesse período foi criada, no Rio de Janeiro, a Associação Cultural José Martí que trabalhava pela aproximação cultural entre os dois países.

  Em 1983 essa instituição organizou uma excursão político-cultural a Cuba, com cerca de quinze pessoas. Minha mulher e eu engrossávamos o grupo. Cada um de nós levava no colo um quadro para a Bienal de Havana. O meu era o de Cláudio Tozzi. Essa viagem rendeu 11 artigos em jornal local, com intuito de divulgar Cuba e incentivar a visita àquele país (http://faustomattogrosso.blogspot.com/1984/).

  Após passar pela estratégica Cidade do México, embarcávamos pela Cubana de Aviação com destino a Havana. Chegamos à Ilha em 29 de dezembro de 1983, para a comemoração do 25º ano da Revolução que ocorreria em 1º de janeiro de 1984.

  Ciceroneados por Sérgio Cervantes, que já nos aguardava, fomos recebidos com todas as atenções e honrarias, especialmente os dois vereadores que compunham a delegação, eu, do PCB, e o outro do MDB, o empresário Armando Raineri, de Marília, proprietário das Massas Raineri. Recepções, palestras, contato com brasileiros, com direito até a entrevista na Rádio Havana. O retorno também se deu pelo México.

  No aeroporto de Viracopos, tivemos que passar pela revista da Polícia Federal, de olho na possibilidade de assumir a ida a Cuba, dentro do espírito de causar confusão. Eu e minha mulher fomos sorteados para revista de bagagem. Ao perguntarem de onde vínhamos respondi que de Cuba. O policial federal me perguntou o que eu trazia, afirmei que só pequenas lembranças para presentes. Foi quando ele viu bem em cima das roupas um belo álbum ilustrado com o título de “Educação e Revolução”, que trazia para presentear o Secretário de Educação MS. Na sequencia me perguntou o que eu transava educação ou revolução? Respondi que um pouco de cada coisa. Nesse instante o policial que revistava outra mala gritou: epa! aqui tem uma coleção completa das obras de Lênin. Pronto, estava tudo no jeito para armarmos o barulho.

  Entretanto o primeiro policial me indagou se eu era de Campo Grande e se eu conhecia o Lúdio Coelho. Ele disse que era “coelho pobre” da família dos Coelhos ricos e que trabalhava ali para estudar na Unicamp. Disse que poderíamos passar sem problemas.

  Já estávamos embarcados no ônibus quando o “policial” que nos revistara estava saindo do plantão, convenientemente vestido com uma camisa do PT. Estragou minha confusão.

Fausto Matto Grosso

 

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

(Um livro escrito página a página) 

O MEDO DO OUTRO

 



           A partir do AI-5, em dezembro de 1968, a ditadura assumiu o seu caráter fascista. Em um primeiro momento ocorreu o confronto e a destruição dos grupos de luta armada. A morte de Carlos Marighela em 1969 foi um episódio representativo desse período.

Com a posse de Ernesto Geisel em março de 1974, diante de grande pressão da opinião pública, o regime começou a ensaiar o seu processo de “abertura lenta, gradual e segura”. Foi exatamente nesse contexto que o PCB passou a sofrer a mais amarga repressão. Foi vítima do próprio acerto da sua política de frente democrática, que combinava a ação política clandestina com a ocupação de espaços legais, buscando isolar o regime.

Entre 1973 e 1975, um terço de seu Comitê Central foi assassinado pela repressão, e milhares de militantes foram submetidos à tortura, alguns até a morte, dentre os quais o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho. Diante desses fatos, foi decidida a retirada do Comitê Central do partido, para o exterior. Por suspeita de infiltração no seu esquema de fronteira, foi recomendado que cada dirigente deveria montar o seu próprio esquema individual de saída do País.

José Paulo Neto, dirigente do Comitê Central do PCB, havia sido Secretário de Cultura de Juiz de Fora na gestão de Itamar Franco, a quem pediu ajuda. Itamar discutindo com Senador Tancredo Neves montou o esquema de fronteira. Tancredo era amigo do proprietário do Grande Hotel de Corumbá e para lá foi levado o nosso fugitivo.

O Grande Hotel era um magnífico edifício construído por pecuaristas locais, em estilo decô, no centro da cidade.  Já havia recebido gente importante como o presidente Getúlio Vargas, bem como artistas famosos como Wanderley Cardoso e Jerry Adriani. Fizera grande sucesso nos anos 1950 e 1960.

O Zé Paulo, barbudão, sempre pitando seu cachimbo, teria que esperar alguns dias na cidade para o contato com o lado boliviano. Foram dias de muita aflição. Acordava cedo, descia para o café da manhã e sempre tinha um negão olhando para ele. Saia para dar umas caminhadas na praça e lá estava ele de novo fitando-o. Recolhia-se ao quarto. Almoço e jantar, tudo igual.  No dia seguinte, tudo se repetia da mesma forma. Foi ficando assustado, imaginando que estava sendo seguido e que a polícia estaria apenas esperando para ver qual era o esquema de fronteira que estava funcionando para a retirada dos comunistas em fuga. Seria preso, torturado, e quem sabe “desaparecido”.

Diante da aflitiva situação fez contado com Itamar Franco que mobilizou novamente Tancredo Neves. Mais um dia de aflição e o dono do hotel veio falar com ele: não precisava ficar com medo, o negão era também um fugitivo da polícia que estava escondido na cidade. Pronto acabou-se o clima de desconfiança e duelo.

 Muitos anos depois, durante uma viagem de trem que fizemos a Corumbá, o dirigente José Paulo Neto me contou como se virou e dos medos que passou. Paúra de mineiro em fuga em terras desconhecidas.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

 


OS DESAFIOS DOS PREFEITOS


  A poucas semanas de assumir seus mandatos, os novos prefeitos devem estar vivendo um momento de muitas preocupações. Terão que administrar uma população mais empobrecida, com arrecadação menor. Passada a economia de guerra que garantiu renda básica às famílias, afrouxamento fiscal às empresas e alívio às finanças públicas, tudo isso acabará e enfrentaremos os próximos anos com crise econômica, crescimento do desemprego e demandas ampliadas ao sistema de saúde.

  Os resultados das eleições mostraram que população quer resultados e nas eleições não se arriscou a mudanças. Foi significativo o número de prefeitos reeleitos.

  Para se ter bons resultados no governo, é preciso ter bons planos, equipe capaz e governabilidade.

Na realidade política brasileira, de enfraquecimento e desprestígio dos partidos, com raras exceções, a política foi privatizada e as candidaturas passaram a ser individuais e não partidárias e a elaboração de planos de governo passou a ser de responsabilidade dos candidatos.

 Essa elaboração, no geral, tem sido precária. São grupos de amigos ou apoiadores que se reúnem para essa tarefa, em outros casos são apenas formulações geradas pela área de marketing da campanha, para meramente cumprir a obrigatoriedade de plano, para registro das candidaturas.

Não são planos verdadeiros, consistentes, que mostrem a intencionalidade da nova administração, portanto não servirão de guia do governo. Com raras exceções, os governos vão começar sem planos. O primeiro desafio dos prefeitos ao tomar posse é cuidar da elaboração do plano. Como já ensinava Sêneca a seu tempo, não há vento favorável para quem não sabe para onde ir.

O segundo desafio, o de ter capacidade de governo, terá que ser enfrentado já no começo, com a definição dos secretários. Não basta ter quadros de boa formação técnica ou acadêmica. Nada garante que um bom médico será um bom secretário de saúde. Você poderá ter um secretariado com excelentes especialistas, mas não que isso seja uma boa equipe de governo. É um perigo ter um secretariado composto de técnicos que só pensem tecnicamente ou de políticos que só pensem politicamente. O tecnicismo é tão prejudicial quanto a partidarização. Governar não é uma atividade meramente técnica, é tecnopolítica. O desafio é abrir a cabeça dos técnicos para a política e a dos políticos para a técnica. A política a que me refiro é aquela definida pelo plano de governo.

A capacidade de governo, no geral começa baixa e vai crescendo com o tempo até chegar a um patamar mínimo para podermos dizer que o governo começou. A própria população costuma dar um tempo para que o novo governo ache o caminho.  Há um tempo de aprendizado, principalmente em equipes grandemente renovadas. Daí é chave, tanto quanto seja possível, aproveitar-se de quadros da administração anterior, que já tenham experiência técnica acumulada. A política de terra arrasada pode ser um risco

A terceira questão chave para o sucesso de uma administração é ter governabilidade. Não se trata meramente de base parlamentar, mas também apoio dos setores organizados da sociedade, com os quais deve se manter permanente interlocução. O engajamento da sociedade em relação ao plano de governo é importante inclusive para o fortalecimento do apoio parlamentar.

  O grande desafio, nos tempos atuais, é construir uma nova governança para a administração das prefeituras, onde o prefeito não seja só um gerente eficiente, e sim um articulador da sociedade, um líder. Essa é a condição para que a sociedade possa ajudar a gestão com seus imensos recursos, financeiros, políticos, e cognitivos, normalmente não mobilizados. 

  O futuro das cidades, para ser sustentável, precisa ser necessariamente uma construção social.

Fausto Matto Grosso.

Engenheiro e professor aposentado da UFMS