terça-feira, 30 de março de 2021

 

UM TIPO INESQUECÍVEL


(Esta crônica, será publicada no livro "Histórias que ninguém vai contar")

Em 1960, quando minha família se transferiu de Aquidauana para Campo Grande, fomos morar na Rua Quinze de Novembro, bem em frente à casa de Wilson Barbosa Martins. Era uma casa geminada, de um lado morava Raul de Oliveira – irmão de Euclydes de Oliveira - e do outro lado a minha família. No fundo das nossas casas havia muros que davam passagens para o resto do terreno, que tinha uso comum, e que dava de fundo com o Cine Alhambra.

Lá havia duas enormes mangueiras que eram alvos das facas atiradas pelo filho do vizinho, e pelo meu arco e flecha original bororó, enorme. Havia também uma espécie de edícula, com duas salas quase sempre fechadas, cheias de livros. Vez por outra vinha uma pessoa que ficava lá, algum tempo, lendo ou arrumando os livros. Minha família sempre alertava para que eu tivesse cuidados com o estranho, pois se tratava de um comunista, o que eu não sabia bem do que se tratava. Foi esse o primeiro conhecimento que tive de Euclydes de Oliveira.

Nascido em 1909, Euclydes tinha quatro anos de idade quando seu pai foi assassinado numa tocaia. O crime nunca foi esclarecido, mas duas hipóteses são levantadas – brigas por terra ou crime político, já que ele era um líder destacado e Presidente da Câmara Municipal. A morte do chefe de família deixou sua esposa e seis filhos em grandes dificuldades econômicas. Euclydes estudava no Colégio Dom Bosco (Instituto Pestalozzi) quando se submeteu a uma Banca Examinadora do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, uma importante escola pública, assim pode continuar seus estudos.   Paralelamente ao seu curso, preparou-se para a Escola Militar.

Euclydes não queria ser general, escolhera a carreira militar por razões econômicas, para poder sobreviver e continuar estudando. Aspirante do Exército cursava paralelamente o curso de Engenharia na Escola Politécnica que teve que interromper por conta da Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1934 foi promovido a capitão. Lendo o Manifesto Comunista no quartel, começou a achar que aquela era leitura que melhor explicava o mundo.

Em 1935 a política brasileira, estava dividida entre integralistas, simpatizantes do nazi-fascismo e a Aliança Libertadora Nacional (ALN), organizada pelo PCB, que pressionavam o governo Vargas. Euclydes se filiou ao Partido Comunista nesse ano. Em final de dezembro estoura o levante político-militar da ANL em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Euclydes se encontrava em São Paulo, em trânsito para Campo Grande, aonde iria se casar, quando foi preso, processado e expulso do Exército. O casamento do capitão rebelde com Dona Nair Velasco só se deu em 1937, por procuração, ele representado pelo irmão Amando de Oliveira.

O capitão cumpriu pena no Presídio da Rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Na solidão da prisão confortava-se com os chorinhos do seu violão. Conviveu com vários líderes comunistas e também com o escritor Graciliano Ramos, com o qual se atritou num episódio narrado no livro Memórias do Cárcere. No inquérito a que foi submetido, por ter a maior patente, assumiu o papel de transformar o seu julgamento em julgamento do regime, acusando o tribunal de ilegal, como era a da orientação da Internacional Comunista.

Terminada a ditadura Vargas, em 1945, beneficiou-se de um habeas corpus e fugiu, passando a viver clandestinamente em Goiás Velho onde trabalhou como minerador e garimpeiro. Depois, com nome falso de Ovídio de Carvalho, estabeleceu-se em Uberlândia com o Laboratório de Rádio Electra, quando nasceram seus dois filhos, Ovídeo e Leonel.

Anistiado, em 1948 voltou para o Rio de Janeiro onde terminou seu curso na Escola Nacional de Engenharia em 1951. Antes de formar-se, já estagiava no famoso escritório Antônio Alves de Noronha, onde participou de importantes projetos como o cálculo do Estádio do Maracanã. Por indicação de Noronha, simpatizante do PCB, foi participar da construção da Base Naval de Aratu (BA) e da Companhia Nacional de Álcalis em Cabo Frio. Por conta própria foi para o Paraguai onde construiu o imponente Hotel Guarany, até hoje em funcionamento.

Em 1963, Euclydes, um profissional já com grande experiência profissional, resolveu voltar para a sua terra de Campo Grande onde estabeleceu seu escritório de cálculo estrutural. No ano seguinte veio o golpe militar, quando foi preso novamente. Só que dessa vez, além do violão, levou para o cárcere sua prancheta de engenheiro, não atrasando prazos de nenhum dos trabalhos que tinha contratado.  O ex-sargento Levy Dias que foi escrivão durante o seu inquérito policial militar certa vez confidenciou que “Euclydes impressionava pela sua firmeza. Em nenhum momento ele se entregava. Ele não baixava a cabeça. A postura dele era a de um cidadão que estava no comando da situação. Ele estava preso, mas o comando da situação era dele”. Nosso companheiro Onofre da Costa Lima, sempre dizia sobre Euclydes: “esse foi um autêntico bolchevique”.

Como engenheiro do Departamento de Obras Públicas trabalhou na construção do Estádio Morenão, durante o governo de Pedro Pedrossian, de quem se tornou o principal conselheiro na questão das obras pública, como também aconteceu na gestão de Levy Dias na Prefeitura de Campo Grande, e na de Wilson Martins no Governo do Estado.

Fui ter o primeiro contato com Dr. Euclydes quando, formado engenheiro, vim para trabalhar em Campo Grande em 1972. Enquanto esperava minha contratação na Universidade, estagiei no seu escritório por algumas semanas.

  Nos anos 1980 trabalhei com Dr. Euclydes na Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Campo Grande, ele presidente e eu secretário. Depois mais dois mandatos no Conselho Fiscal. No total foram oito anos de trabalho na entidade. Naquela época de restrições às liberdades essas entidades eram espaços de militância política. Continuando na sua trajetória de cidadania, Dr. Euclydes ainda presidiu o CREA e a Santa Casa, importantes instituições da sociedade civil.

  Com a legalização do Partido Comunista Brasileiro, em 1985, os comunistas vieram à luz tendo na direção figuras ilustres e admiradas entre elas o nosso engenheiro.  Precisando apresentar-se à sociedade, o partido optou pelo lançamento de uma candidatura própria para a prefeitura de Campo Grande. Dois nomes foram buscados pelo Partido: Euclydes de Oliveira, prefeito e eu como vice-prefeito. Foi uma campanha memorável, com toda a militância se envolvendo na divulgação da nossa sigla e das nossas propostas. O Partidão era legal, divulgava nossos discursos e nossa propaganda.

  Nosso programa de governo era muito competente e sério, inspirados em duas administrações municipais consideradas exemplares na época: a de Piracicaba (SP) e de Lages (SC). Liderados por Euclydes demos um banho na televisão. Todos reconheciam no PCB o melhor programa, as melhores propostas e o melhor candidato. Para os três minutos de televisão, usávamos todo um dia de trabalho. No fim da tarde, chegava ele todo jovial e entusiasmado, perguntando “cadê a dália”? Era assim que chamávamos nosso teleprompter improvisado com um rolo estreito de cartolina. Aí ele virava um ator seguro e todo cheio de sabedorias. Ficamos longe da vitória, mas afinal essa não era nossa missão.

Sua atividade eleitoral prolongou-se até a eleição de 1988 com sua candidatura a vereador, para ajudar o partido a cumprir a exigência de coeficiente eleitoral. Esse era o fôlego desse capitão, engenheiro e comunista, a essa altura, com 79 anos. Morreu em 10 de junho de 1998, com 89 anos idade, exatamente na data do aniversário do assassinato do seu pai. Parte da vida de Euclydes foi narrada no livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. No filme, aquele capitão briguento que se encrencara com o escritor, foi representado pelo ator Fábio Barreto. Nós, seus amigos e companheiros, brincávamos com ele, dizíamos que, para nós, um artista para representa-lo tinha, no mínimo, que vir de Hollywood. Na sua face, discretamente, surgia um sorriso de vaidade.

FAUSTO MATTO GROSSO

 

*Muitas informações usadas neste texto foram retiradas de um material escrito sobre Euclydes de Oliveira pelos professores Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Junior, para o Arquivo Municipal de Campo Grande.

 


 

2 comentários:

Unknown disse...

Impressionante como prende a gente na leitura. Muito agradável, foi muito interessante ver parte da história do Dr. Euclides de Oliveira.

Elbio Gazozo disse...

Excelente texto sobre nossa história e memória.