terça-feira, 27 de julho de 2021

 

A CULTURA PECEBISTA

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)

 



Na história política brasileira há um estilo de pensar e agir “pecebista”.

O PCB, que fará 100 anos em março de 2022, nasceu no mesmo ano em que acontecia a Semana de Arte Moderna de 1922, movimento esse que rompeu com os paradigmas elitistas e marcou a cultura brasileira. Vários intelectuais que fizeram parte desse movimento se filiaram a esse partido.

Ao longo do tempo, esse passou a ser o caminho natural de grande parte de intelectuais brasileiros, fato que permitiu ao PCB ter massa crítica para pensar sua política a partir do exame da realidade brasileira, longe da cópia de modelos pensados em outras realidades. Pensar a realidade brasileira para a definição da sua política passou a ser um dos pilares da cultura pecebista.

A cassação de seu registro em 1948 levou o partido a um breve período de radicalização esquerdista, mas, já em 1958, a partir da Declaração de Março, o partido rompe com o stalinismo, indica o caminho democrático para a revolução brasileira e começou a pleitear o seu reconhecimento legal para participar da luta política como qualquer outro partido. Para isso, muda o nome para Partido Comunista Brasileiro (PCB) já que com o nome antigo havia sido cassado. Esse compromisso com a democracia foi o segundo pilar da sua cultura política.

A resposta ao Golpe Militar marcou um divisor de águas na esquerda brasileira, com o surgimento de vários grupos de luta armada. O Partidão manteve-se firme na política de frente democrática. Condenou a luta armada e apontou o caminho da unidade das forças democráticas para a conquista da Anistia, da Constituinte e de eleições livres e diretas. Esse foi o caminho vitorioso da redemocratização. Essa política de frente democrática ampla se transformou na via vencedora na luta contra a ditadura. Foi a insistência nessa política de frente democrática no pós-64 que lhe deu confiabilidade e uma influência bem maior que o seu verdadeiro tamanho. Foi a afirmação da luta política, e não o caminho da das armas para a revolução brasileira.

A afirmação da luta política diante dos descaminhos da luta armada constituiu o terceiro pilar do pecebismo.

         Esses três elementos, pensar a realidade brasileira, defender a democracia e acreditar na política como forma de luta, constituem os elementos fundantes da cultura pecebista. Essa cultura influenciou a política brasileira por muitos anos, e esparramou-se para além das fronteiras partidária.

Para além do lugar que ocupam na história nacional, os comunistas do PCB deixaram várias contribuições para o pensamento de esquerda no Brasil, dentre elas, a mais importante é a da valorização da política e da democracia no campo da esquerda. O pensamento político do PCB não se reduziu a mero reflexo de uma ideologia exógena, forjou um tipo de atuação influenciado por valores democráticos e particularmente por condutas unitárias.

As crônicas que colocamos nesse livro dizem respeito à história de vida de muitas pessoas com as quais compartilhamos a mesma luta política. A cultura pecebista forjou uma camaradagem sólida entre os personagens dessas histórias, que hoje perpassa as fronteiras partidárias e se tornou um valor afetivo.

 O INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MOSCOU

                                                Marisa Bittar

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)



 

   O Instituto de Ciências Sociais de Moscou, anexo ao Partido Comunista da União Soviética era a escola que recebia camaradas de todo o mundo para cursos de formação. Seu imponente prédio, situado na esquina da Leningradskii Prospect, 49 (Avenida Leningrado) era composto por salas de aula, biblioteca, espaços comuns de convivência, um belo anfiteatro, restaurante, ginásio de esportes, além de uma Clínica e outro prédio contíguo onde ficavam as moradias. Em missão do PCB-MS para me aprimorar no trabalho de educação política, ali cheguei em 1981, me deparando com um mosaico cultural incrivelmente diverso composto por países das mais diferentes regiões do planeta.

Todas as turmas passavam primeiro pela dasha, isto é, casa de campo, onde realizavam exames médicos, familiarizavam-se com a vida que iriam ter e começavam a aprender o russo. Em uma das aulas iniciais, o professor nos apresentou o primeiro verbo que deveríamos conjugar: o verbo trabalhar. Demonstrando expressão de surpresa pensei: o primeiro verbo não seria o “ser”?. Adivinhando meus pensamentos, o professor proferiu a bombástica frase: “No socialismo ninguém vive sem trabalhar!”

  Da dasha, fomos para o Instituto. Ele era organizado por cátedras e cada uma delas composta por doutores de Estado, cuja distinção era o domínio em três línguas estrangeiras. Nessas cátedras, os professores se organizavam pelos idiomas e turmas nas quais lecionavam; e os estudantes constituíam-se por países. O currículo era composto por História do Partido Comunista da URSS e do Movimento Operário Internacional; Filosofia; Economia Política; Teoria Política, além das aulas de russo, mas variava de acordo com o tempo que cada coletivo permaneceria na escola. A cada disciplina era destinado um dia específico da semana, e a aula durava a manhã toda. O professor expunha o assunto, esclarecia dúvidas e, depois, determinava a nossa tarefa. Portanto, tínhamos muitas horas de aula e outras tantas de estudos individuais que deveriam ser apresentados na aula seguinte de forma organizada, isto é, com base em anotações e sínteses das leituras recomendadas.

  Cada turma tinha professores que falavam a sua língua. Assim, a maior parte das nossas aulas era ministrada por professores que falavam português. Aqueles que não falavam eram acompanhados por tradutores (pirivôtchi) que haviam aprendido o português de Portugal. Por isso, já nas primeiras aulas, nós brasileiros, de forma bem-humorada, tratávamos de lhes comunicar que, a partir dali, nós os ensinaríamos o verdadeiro português!

  Nossa fama era a de sermos os mais brincalhões e comunicativos da escola, nem os italianos ganhavam de nós. Mas exibíamos também traços negativos de nossa cultura. Isso ficava claro, por exemplo, quando os professores nos cobravam a tarefa e recebiam de alguns a seguinte justificativa: “Professor, eu não tive condições de ler essa bibliografia porque precisei fazer exame médico justamente nesse dia!” A esperança de que essa desculpa fosse indiscutivelmente aceita, residia no fato de que todos no Instituto sabiam que ninguém lá dentro mandava mais do que as médicas e nenhuma autoridade era mais temida do que a  Doutora Iulia! Todos, indistintamente, entre alunos e professores, já tinham passado pelo menos uma vez pela experiência de estarem despreocupadamente no hall de convivência quando, de repente, eis que surgia a linda médica, que, ao passar por determinada pessoa que estava em falta com ela, apenas lhe advertia em tom doce: “Amanhã, obrigatoriamente, Clínica!” O tom que ela punha na palavra “obrigatoriamente” não deixava dúvidas: você tinha de ir mesmo! Todavia, essa “culpa” que espertamente se esperava atribuir à Doutora Iulia pela tarefa não realizada, quando apresentada na aula do professor Kapustin, que falava português e conhecia pessoalmente a nossa cultura, recebia severa reprovação que me deixava envergonhada: “Kapustin conhece muito bem os brasileiros!”

  Diferentes atividades aconteciam no Instituto. Além de nossas aulas e tarefas de estudo, cada coletivo programava encontros bilaterais de seu interesse, o que enriquecia nossa experiência política e cultural, além da oportunidade de novas amizades. Às segundas-feiras de manhã, em vez das aulas, todos os coletivos se reuniam no lindo anfiteatro para uma conferência, festividade cívica ou apresentação cultural. As de música e dança eram as nossas preferidas. Antes de qualquer dessas atividades, todos cantavam a Internacional, de pé, cada coletivo em sua língua.

  Duas viagens de estudo complementavam o currículo: uma delas, prêmio para todos, era a belíssima Leningrado onde ficamos sem fôlego ao entrarmos no Palácio de Inverno (Hermitage). Ainda bem que Lênin advertiu os revolucionários quando lá entraram para a tomada do poder: “Não destruam nada, temos de preservar tudo isso para as próximas gerações, é patrimônio cultural do nosso povo”. A segunda viagem se destinava a uma das 15 Repúblicas soviéticas. À minha turma, coube a Armênia, um choque de realidade que nos deu a lição de como era difícil edificar o socialismo com a pobreza herdada do regime anterior.

  Para completar, havia os sábados de trabalho. Limpar ruas; empacotar medicamentos; ajudar alguma fábrica a cumprir suas metas de produção, enfim, esse trabalho era obrigatório para todos e encarado pelo Partido Comunista da União Soviética como uma “grande iniciativa” desde o início da Revolução. Afinal, “no socialismo, ninguém vive sem trabalhar”.

  Num frio alvorecer de março, em 1982, chegou a hora de voltar para casa. Sob rígidas normas de segurança, embarcaríamos no aeroporto de Moscou. Com o camarada Mário César Ferreira, o Cecéu, olhei para trás a fim de fotografar o Instituto com os olhos. Jamais passaria pela minha cabeça que em menos de uma década a União Soviética se desintegraria e que o nosso amado Instituto se tornaria uma Faculdade de Finanças, na qual, juntamente com Amarilio Ferreira Jr. voltamos em 2012. Na mesma pracinha onde havíamos chegado em 1981, agradecemos ao PCB por ter proporcionado a nós e a tantos outros camaradas de Mato Grosso do Sul uma experiência inimaginável que tornou nossas vidas infinitamente mais ricas.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

                                     A CRISE CUBANA


           Cuba está vivendo hoje a maior crise desde a Revolução. Não é uma crise qualquer, está em jogo a sobrevivência do seu regime político. Dizia Gramsci, “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Tanto o bloqueio quanto o socialismo cubano fazem parte do velho.

Não há como analisar Cuba sem se referir ao abominável bloqueio imposto pelos Estados Unidos. Sua suspensão é parte da solução do problema cubano. O bloqueio dos Estados Unidos é irresponsável e condenável, e é um resquício dos tempos sombrios da Guerra Fria. Desde 1992, a Assembleia Geral da ONU vota esmagadoramente pelo fim desse bloqueio.

Os EUA nunca se conformaram por ter perdido Cuba da sua área de influência. Acham inaceitável um país socialista no seu quintal. Por isso, logo após a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra, tentaram invadir a Ilha com tropas mercenárias. Foram derrotados em abril de 1961. No ano seguinte, o presidente Kennedy decretou o bloqueio a Cuba, que perdura até hoje. Trump determinou mais 243 novas medidas de bloqueio, até agora, não removidas por Biden.

  Mas é simplório e negacionista o discurso do governo cubano, que busca responsabilizar exclusivamente os americanos pela crise econômica e social do país. Ela tem raízes profundas na história e na natureza do socialismo cubano.

  Os manifestantes nas ruas reclamam da escassez de alimentos e remédios, problemas antigos e conhecidos. Reclamam dos apagões elétricos e mais recentemente denunciam o baixo acesso à vacinação contra a Covid. A pandemia também zerou uma das principais fontes de recursos do país, o turismo, fazendo com que a situação interna se agravasse. Não há como negar como justas essas reclamações. Nunca foi projeto do socialismo a igualdade na escassez.

Ao lado dos problemas reais, a internet se transformou em um poderoso instrumento de irradiação do descontentamento, mas também de organização e mobilização das manifestações.

Os cubanos clamam também por democracia e liberdade. Ou o regime encontra o caminho de reformas econômicas e políticas ou corre o risco de sucumbir. Ditaduras não são aceitáveis, nem as de direitas, tampouco as de esquerda. O socialismo nas atuais condições do mundo só é possível se incorporar uma nova plataforma que contemple a democracia, a liberdade e as novas demandas contemporâneas da cidadania global.

Após a morte de Fidel e a aposentadoria de Raul, os dirigentes cubanos iniciaram uma tímida flexibilização da economia e uma renovação na estrutura de poder porque sabem que é inescapável e urgente organizar uma transição do “socialismo real” para uma economia aberta ao mercado e para um sistema político democrático.

É importante ressaltar que para que as mudanças ocorram é imperiosa a suspensão do bloqueio. A pressão internacional sobre os Estados Unidos precisa avançar, tanto na ONU como opinião pública mundial. A suspensão do bloqueio fará com que Cuba se encontre com a sua verdade e avance nas reformas.

No caso da União Soviética, as reformas de Gorbatchov não chegaram a tempo, e o socialismo real desmoronou. A China reformou a economia, mas não reformou a política. Em Cuba, o povo nas ruas pode catalisar o processo de reformas, que já deveria ter ocorrido há quase 40 anos Não sei se Cuba tentará fazê-las, e com a profundidade necessária e se terá tempo para isso.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

quinta-feira, 22 de julho de 2021

 UMA PRISÃO PROVIDENCIAL

Marisa Bittar  

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)


        

  Começavam os primeiros dias de maio. O ano era 1981.

O Partido havia feito uma manifestação no 1º de Maio e planejava uma ação-surpresa tendo em vista que políticos da ARENA estavam chegando a Campo Grande para lançar seu sucedâneo, o Partido Democrático Social (PDS). A principal figura da comitiva governista pró-ditadura militar era Paulo Salim Maluf.

  O esquema era o seguinte: dois grupos de militantes se encarregariam de pichar muros centrais da capital com dois slogans “Cuidado com sua carteira, Maluf vem aí” e “PSD= O Povo Deve Sofrer”. Eu compunha uma das equipes coordenadas pelo camarada Mario Sérgio Lorenzetto, que seguia à risca as instruções de segurança recebidas de nossos dirigentes. Na madrugada fria, após cumprirmos nossa tarefa, reunimo-nos na praça do Rádio Clube, tal como previamente combinado, para avaliarmos a operação e nos dispersarmos. Tudo havia sido um sucesso, nenhuma pista deixáramos. Mário Sérgio, então, nos mandou a todos para casa dormir.

  Contudo, assim que ele se afastou, restaram da minha equipe Mário Albernaz, Amarilio Ferreira Jr. e eu mesma. Estávamos tão perto dos muros do Jardim dos Estados, ainda tínhamos nossas tintas e muita energia! Foi quando um deles teve a ideia: “que tal picharmos mais uns dois muros?” Entusiasmados, lá fomos nós três. Mal começamos a escrever “PDS”, dois fortes faróis se acenderam nas nossas caras. Ao mesmo tempo, dois policiais desceram da viatura e gritaram: “Mãos pra cima!” Imediatamente nos ordenaram que abríssemos o porta-malas do Fiat que Amarilio dirigia e lá encontraram os panfletos restantes do Primeiro de Maio. Então, disseram apenas “pegamos”, e nos enfiaram dentro do camburão.

  Chegando à sede da Polícia Federal nos mandaram descer e entregaram-nos às autoridades a quem eles julgavam competentes para o caso. Estas, por sua vez, fizeram nossas fotos de frente e de perfil, e começaram a nos interrogar individualmente. Na minha vez eu só respondi que estava fazendo pichação por minha conta mesmo, que não pertencia a nenhuma organização. “E o que uma menina como você está fazendo com esses dois nessa madrugada tão fria, arriscando a sua vida?”. Eu não respondi nada. Só pensava que estava frita, pois havia desobedecido as ordens do Mário Sérgio colocando o Partido em risco e, além disso, mortificada comigo mesma, eu me cobrava “Logo eu que ajudo a manter os documentos do Partido e sou considerada disciplinada? Como vou justificar isso?”. Fomos colocados em celas separadas, escuras, e eu não tinha ideia do que nos iria acontecer, mas comecei a pensar também que quando o dia amanhecesse minha mãe não me encontraria na minha cama! Arrependida, eu pensava: “Por que não fizemos como Mário Sérgio mandou?!”

  No dia seguinte nos colocaram em uma viatura e nos transferiram para a delegacia do Bairro Cruzeiro. Lá, fomos destinados a uma cela comum, muito suja, na qual ficamos os três juntos pela primeira vez desde a nossa detenção. Como havia outros presos, nós nos comunicamos minimamente com olhares e sinais confirmando uns aos outros que nada havíamos falado sobre o Partidão. No fim daquele dia, graças à ação dos advogados do PCB, dentre os quais Marcelo Barbosa Martins e Carmelino Rezende, fomos notificados de que iríamos para a Delegacia Central da cidade e de lá, após procedimentos que deveriam ser cumpridos, provavelmente seríamos liberados. Foi o que realmente aconteceu após perguntas, fotografias, fichamentos etc, e os policiais, satisfeitos, repetindo que tinham desbaratado a operação contrária ao governo, a mesma que tinha feito a manifestação “subversiva” do Primeiro de Maio. Quanto a nós, embora aliviados, estávamos sem-graça para encarar nossos dirigentes que estavam ali para acompanhar o desfecho da ação. Sabíamos que depois teríamos de lhes prestar contas de nosso ato indisciplinado.

  Terminado o ritual policial, fomos liberados. Amarilio e eu fomos acompanhados por uma pequena caravana até minha casa na Rua Padre João Crippa, onde avistei um amontoado de gente na calçada aguardando a nossa chegada. Soubemos então que a notícia de nossa prisão havia corrido de boca em boca desde que um boletim fora expedido da Delegacia do Bairro Cruzeiro. Dentre minha mãe e irmãos, uma porção de amigos comuns tanto do PCB quanto do PT, muitos dos quais ainda hoje fazem parte do meu precioso rol de amizades construído durante a juventude. Do PT havia também aqueles cuja predileção era criticar o PCB com os piores qualificativos que, para nós, jovens militantes, eram verdadeira afronta e inaceitável ofensa. Segundo o refrão que repetiam a torto e a direito, revolucionários eram só eles do PT, o “único partido da classe trabalhadora”, “o primeiro construído pela classe operária brasileira”. Ao PCB que, fundado em 1922, era de fato o primeiro e mais antigo partido da classe operária brasileira cabia sempre os rótulos de “partido aliado da burguesia”, “conciliador”, “reformista”. E a minha casa era locus de muitas dessas discussões acaloradas porque uma parte de meus irmãos era do PCB, e a outra, do PT; cada uma delas arregimentando um pequeno exército. Por isso, ao ser euforicamente recebida por essa comitiva, olhei altiva para os “verdadeiros revolucionários” perguntando-lhes: “E então, quem foi pra cadeia?!”.

  Dias depois, tivemos de responder à direção do Partidão pelo nosso ato de indisciplina. Por um lado, aceitamos conformados as severas e justas críticas que recebemos. Por outro, no fundo do nosso íntimo, sentíamo-nos vingados das injúrias políticas que outros grupos de esquerda em Campo Grande viviam nos dirigindo. Por isso, apesar das graves consequências, transformamos o nosso erro em um triunfo para nós, jovens do PCB, uma prisão providencial!

segunda-feira, 12 de julho de 2021

 

TRANSPARÊNCIA DEMOCRÁTICA


O Brasil assiste ao vivo as transmissões das sessões da CPI da Covid, ao mesmo tempo em que acompanha, também ao vivo, as sessões do Supremo Tribunal Federal. Essa realidade de transparência é uma boa medida do avanço da nossa democracia, no que diz respeito ao Judiciário e ao Legislativo.

Hoje a população brasileira sabe o nome dos ministros, como sabe dos craques da seleção. O Levandowisk, o Gilmar Mendes, a Rosa Weber, o Marco Aurélio entre outros são amados ou detestados conforme seus votos.  Esse acompanhamento pela cidadania produz uma maior legitimação democrática das decisões

Entretanto, a transmissão ao vivo das sessões do Supremo, não é ainda uma questão pacificada. Os debates duros entre os ministros tem sido argumento para aqueles que defendem que a transmissão seja feita à noite, depois de editados os vídeos. Há ainda aqueles que advogam o fim da transmissão, pura e simplesmente, em ambos os casos, um profundo retrocesso.

  As transmissões ao vivo dos julgamentos realizados pelo Supremo, são um mecanismo de transparência que permite o controle externo indireto, realizado pela opinião pública. Ao mesmo tempo essa prática aproxima o Poder Judiciário do povo, contribuindo para a formação política da cidadania. Também é uma oportunidade para os estudantes de Direito ampliarem a sua formação técnica a respeito das questões constitucionais. As escaramuças descontroladas entre os ministros, que causa perplexidade na população, são pontos fora da curva e serão mais raras em sessões públicas, pois os ministros se obrigarão a se tratarem de maneira mais respeitosa e equilibrada.

  Também as transmissões ao vivo das sessões da CPI do Covid cumprem um papel de transparência democrática. Conhecer os subterrâneos do poder ajuda na formação política da cidadania.

  É através da CPI que estamos conhecendo a corrupção na Saúde, os prejuízos causados pela incompetência e pela burocratização, a frouxidão dos processos internos, a advocacia administrativa e o empreguismo de militares envolvidos com mal feitos. Com a presença de sete mil militares no governo, Bolsonaro espera garantir o apoio das forças armadas ao seu mandato.

Causa preocupação também, o tráfico de influência desempenhado por organizações evangélicas que acessam diretamente o governo, com desenvoltura de máfias. A ligação dessas com o governo “tremendamente evangélico” faz parte do plano do Presidente de consolidar sua base eleitoral, cada vez mais desgastada.

  O papel de fiscalização, hoje desempenhado excepcionalmente pela CPI, não devia causar tanto sobressalto na política, deveria ser encarada como uma questão rotineira. As funções do Legislativo são de legislar, representar a população e fiscalizar o poder executivo. É provável que com executivos mais fiscalizados rotineiramente, diminuísse a necessidade de CPIs bombásticas. Infelizmente tal não ocorre e predominam as relações de trocas e dependências entre legislativo e executivo, pouco republicanas e promíscuas.

  Atualmente, as transmissões ao vivo das sessões do Supremo e da CPI do COVID, criam uma atmosfera democrática, que permite os cidadãos terem acesso à realidade da política. São como duas janelas que iluminam a vida democrática. Por isso é que uma das primeiras coisas que as ditaduras fazem é fechar o Supremo e o Congresso, como clamam algumas vozes saídas do fundo das cavernas e dos pântanos. Vade retro!

FAUSTO MATTO GROSSO,

Engenheiro e professor aposentado da UFMS 

 

sábado, 10 de julho de 2021

 

WILSON E O PARTIDÃO
(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)



Não sei se Wilson Barbosa Martins tinha um plano para si no cenário político do nascente estado de Mato Grosso do Sul, mas o Partidão tinha um plano para ele. Deputado Federal por duas vezes, advogado defensor de presos políticos, respeitado pelo seu compromisso democrático, cassado com base no AI-5, com grande estatura intelectual e moral, tinha todos os requisitos para assumir a liderança da luta contra a ditadura em nosso estado. Essa foi a trajetória que, modestamente, ajudamos a construir, conforme reconhecido por Wilson, na sua própria biografia.

Nem sempre houve concordância entre o que defendíamos. Essas discordâncias ajudaram a identificar os limites políticos do nosso relacionamento. Wilson desejava nossa ajuda, mas não queria ser confundido conosco, o que entendíamos e respeitávamos.

O primeiro passo do plano foi viabilizar sua candidatura a presidente da OAB-MS. Tínhamos há anos a liderança na entidade, o que facilitou sua eleição. Com seu mandato na OAB, Wilson ampliou a sua visibilidade política no estado e sua articulação nacional através do Conselho Federal da OAB.

O passo seguinte foi eleição para governador em 1982. Uma ampla frente se formou em apoio a Wilson naquela que foi a primeira eleição direta para governadores. Foi uma vitória memorável, com o PMDB se impondo nacionalmente e no estado. A luta democrática colheu um importante resultado.

A partir daí, nossa relação com o governador, de certa forma, passou a ser mais discreta, quase clandestina. O Partidão, nem seus principais dirigentes jamais compareceram à Governadoria. O local das nossas conversas era o escritório de advocacia do governador. Nossos principais interlocutores eram Onofre Costa Lima e Carmelino Rezende, com os quais Wilson mantinha relações de camaradagem. 

Apesar dessa relação discreta, Wilson começou a ser cobrado como tendo concedido muito espaço ao Partidão o que não correspondia à realidade, mas causava grande desconforto tanto aos pemedebistas históricos como aos aliados mais conservadores do governador. Essa situação acabou gerando uma pressão anticomunista contra o governo, inclusive por parte da imprensa. É nesse contexto, tendo em vista a formação de uma ampla frente para isolar a Ditadura, que apoiamos a indicação de Lúdio Coelho a prefeito nomeado de Campo Grande. Era preciso dar um fôlego para o governo começar a governar.

O governador, diante da grande disputa pelo cargo de prefeito nomeado, principalmente entre os autênticos do PMDB, decidiu que ouviria o diretório municipal do PMDB, onde se abrigavam os comunistas, que detinham um terço dos seus membros.  O voto decisivo dos comunistas para a indicação de Lúdio se deu dentro da nossa perspectiva de frente democrática, onde todos que participaram da campanha estavam credenciados a participar do governo. O grupo de pecuaristas representados por Lúdio estava nessa condição e ajudaria a dar governabilidade a Wilson.

 O partido nunca pediu cargos no governo, mas ajudamos o governador a escolher secretários qualificados, sem relação partidária conosco.  Isso permitiu formar um bom secretariado, de perfil decente e progressista. Em função disso, importantes avanços foram conseguidos na educação, na saúde e na segurança pública, entre outras áreas. A bem da verdade, durante esse período, tivemos dois companheiros nossos ocupando cargos: na Enersul Ricardo Bacha e na Secretaria de Trabalho o advogado João José de Souza Leite, ambos atendendo convites pessoais do governador, sem nenhuma interferência partidária.

  Desavenças nossas existiram com a área de obras públicas, ocupada por quadros ligados ao senador Marcelo Miranda. Discordávamos do caráter faraônico das obras, que seguiam ainda o velho padrão do milagre brasileiro. A partir de posição que passamos a ocupar no governo Lúdio e na Câmara Municipal de Campo Grande travamos essa discussão pública. Uma das vitórias nossas nesse período foi salvar os Córregos Prosa e Segredo do completo envelopamento, caro e não ecológico.

O governo Wilson foi um marco na luta democrática e da moralização da gestão pública inscrevendo nosso estado no contexto nacional das mudanças. A campanha por eleições diretas cresceu com o firme apoio do governador, assim como a luta pela anistia e direitos humanos. Apoiamos e participamos de todas essas lutas, primeiramente dentro do próprio PMDB, até 1985, quando foi legalizado nosso partido, depois continuamos nossa relação dentro da Aliança Democrática formada pelo PMDB, PFL, PCB e PCdoB.

Em 1988, veio a nossa ruptura com o PMDB durante o processo eleitoral para prefeito de Campo Grande. Terminava meu mandato de vereador e a reeleição era considerada certa. O candidato a prefeito era Plínio Barbosa Martins, nosso tradicional aliado político, portando, estávamos apostando em uma confortável aliança política. Aprovamos em nossa convenção a coligação com o PMDB quando, para nossa surpresa, esse partido, unilateralmente recusou a coligação com o PCB, que havia sido combinada com Wilson.  Esse mal explicado episódio selou nosso rompimento com o PMDB e nos levou a uma desesperada campanha com uma candidatura própria a prefeito, com Alan Pithan e Onofre da Costa Lima, que não logrou atingir o quociente eleitoral para vereador. Assim, foi encerrado o meu mandato na Câmara Municipal de Campo Grande.  Essa Wilson ficou nos devendo.