domingo, 7 de março de 2021

 

ARAPONGAGEM NO PARTIDÃO

(Esta crônica será publicada no livro "Histórias que ninguém vai contar")


  A araponga é uma ave pertencente à família Cotingidae, gênero Procnias que produz som alto e estridente, parecido ao de um martelo batendo numa bigorna. Por estranho que pareça o termo é usado para denominar um policial infiltrado, daqueles que tem que trabalhar no quieto. Segundo algumas referências, o sentido de agente secreto começou em uma novela da Globo, escrita por Dias Gomes. O protagonista era o detetive atrapalhado Aristênio Catanduva (Tarcísio Meira) que uma vez finda a ditadura, não tinha mais a quem alcaguetar nem torturar e, por essa razão, trancado em seu quarto, torturava-se a si mesmo e depois sorvia leite de uma mamadeira.

  Existe uma classificação funcional dos agentes de informações – o infiltrado e o provocador, quando pertencentes à polícia ou aos órgãos de repressão, e os informantes e delatores, quando pertencentes à própria organização espionada. “Araponga” foi o termo intencionalmente criado para representar, de forma cômica e negativa esses agentes. Também eram chamados de X-9, nome originário de uma história em quadrinhos “O agente Secreto X-9”, que existiu entre 1934 e 1996.

  Aqui em Mato Grosso do Sul, a arapongagem, durante a ditadura, correu solta. Eu me lembro dos estudantes-arapongas infiltrados na UFMS. Eram jovens que entravam, sem vestibular, em diversos cursos como Engenharia, Medicina, Educação Física entre outros, todos mancomunados com a Assessoria de Segurança Informação da própria universidade. Hoje são profissionais que circulam faceiramente, sem embaraço, entre seus colegas que eram arapongados, alguns até não escondem o passado de dedos-duros.

  O Partidão também era de grande interesse desses órgãos de informações/repressão durante a ditadura, tanto no plano nacional com regional. Até o Comitê Central, no exterior, chegou a ser alvo da infiltração feita pela CIA que resultou na prisão e assassinato de dirigentes. Após a redemocratização muitos arquivos e documentos “confidenciais” foram abertos à sociedade, principalmente após o trabalho da Comissão da Verdade.

Sobre o Partidão de Mato Grosso do Sul, existe copioso material, hoje acessível, no Arquivo Nacional e no Arquivo Publico do Estado de São Paulo. Éramos acompanhados intensamente pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), pela Polícia Federal e pelo setor de informações do Exercito e da Aeronáutica.   Todos os eventos, ações políticas e participação social eram fartamente documentados. Dirigentes partidários, liderança dos movimentos sociais e estudantis eram documentados em suas mínimas atividades.

Naturalmente, tínhamos preocupações e cuidados, mas isto era insuficiente. Com o material hoje disponível podemos verificar a extensão dos riscos que corríamos, inclusive com as infiltrações policiais entre os nossos quadros. Nosso trabalho de incorporação de novos militante era cuidadoso, inclusive fazendo-os passar por longos períodos de aproximação através de cursos que ao mesmo tempo em que os capacitava politicamente, buscavam conhecer bem as pessoas. Tem até o caso de uma companheira, que só foi admitida depois de terminar o casamento com um “língua solta”.

  Lembro que tínhamos muita preocupação com a escuta telefônica e com microfones ocultos, tanto que muitas reuniões eram realizadas em carros rodando pela cidade ou estacionados a ermo. Foi assim a com o Movimento de Anistia de Direitos Humanos encaminhada com uma reunião de Ricardo Brandão com dirigentes estaduais do partido, rodando em círculos na Cidade Universitária, já tarde da noite.

  Para o caso de necessidade de despiste, conhecíamos todos os locais que tinham uma entrada e duas ou mais saídas ou se prestassem a confundir eventual seguidor. Lembro o caso da agencia central de Correios, do antigo Hospital da Noroeste (hoje Hospital do Câncer) e a travessia do trilho do trem, na Rua Barão do Rio Branco, onde uma escadaria dificultava a perseguição por carro. Foram lições da vida clandestina, usadas em favor da luta política e ideológica. Esses locais de despiste, ficamos sabendo depois, alguns camaradas também os usava para a safadeza de despistar namorados ciumentos.

FAUSTO MATTO GROSSO

(Esta crônica foi escrita com a ajuda à memória de Orlando Rocha)

 

2 comentários:

Sergio Leal disse...

Conheci alguns. Entre Professores de nível médio da rede pública também.

O caminho se faz ao caminhar disse...

Parabéns, Camarada Fausto, pela aula de memória, leveza e irreverência com um tema, no mínimo, tabu (como se dizia em nossa juventude). Porque, além do perigo iminente representado pelos “dedos-duros” e “infiltrados” do regime, sempre estávamos às voltas do, digamos, “fogo-amigo”, em que alguém que não gostasse ou não se sentisse à vontade com algum companheiro de movimento (de dentro ou fora de qualquer organização de esquerda), lá vinha o “rótulo”, ao pé da orelha: “parece que fulano é infiltrado, toma cuidado...”

Mais uma vez, suas crônicas nos fazem viajar...

Parabéns, e grande abraço!

Fraternalmente,

Schabib