ARAPONGAGEM NO PARTIDÃO
(Esta crônica será publicada no livro "Histórias que ninguém vai contar")
A araponga é uma ave
pertencente à família Cotingidae, gênero Procnias que produz som alto e
estridente, parecido ao de um martelo batendo numa bigorna. Por estranho que
pareça o termo é usado para denominar um policial infiltrado, daqueles que tem
que trabalhar no quieto. Segundo algumas referências, o sentido de agente
secreto começou em uma novela da Globo, escrita por Dias Gomes. O protagonista
era o detetive atrapalhado Aristênio Catanduva (Tarcísio Meira) que uma vez
finda a ditadura, não tinha mais a quem alcaguetar nem torturar e, por essa
razão, trancado em seu quarto, torturava-se a si mesmo e depois sorvia leite de
uma mamadeira.
Existe uma
classificação funcional dos agentes de informações – o infiltrado e o
provocador, quando pertencentes à polícia ou aos órgãos de repressão, e os
informantes e delatores, quando pertencentes à própria organização espionada.
“Araponga” foi o termo intencionalmente criado para representar, de forma
cômica e negativa esses agentes. Também eram chamados de X-9, nome originário
de uma história em quadrinhos “O agente Secreto X-9”, que existiu entre 1934 e
1996.
Aqui em Mato Grosso do
Sul, a arapongagem, durante a ditadura, correu solta. Eu me lembro dos
estudantes-arapongas infiltrados na UFMS. Eram jovens que entravam, sem
vestibular, em diversos cursos como Engenharia, Medicina, Educação Física entre
outros, todos mancomunados com a Assessoria de Segurança Informação da própria
universidade. Hoje são profissionais que circulam faceiramente, sem embaraço,
entre seus colegas que eram arapongados, alguns até não escondem o passado de
dedos-duros.
O Partidão também era
de grande interesse desses órgãos de informações/repressão durante a ditadura,
tanto no plano nacional com regional. Até o Comitê Central, no exterior, chegou
a ser alvo da infiltração feita pela CIA que resultou na prisão e assassinato
de dirigentes. Após a redemocratização muitos arquivos e documentos
“confidenciais” foram abertos à sociedade, principalmente após o trabalho da
Comissão da Verdade.
Sobre o Partidão de Mato Grosso do Sul, existe copioso
material, hoje acessível, no Arquivo Nacional e no Arquivo Publico do Estado de
São Paulo. Éramos acompanhados intensamente pelo Serviço Nacional de
Informações (SNI), pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), pela
Polícia Federal e pelo setor de informações do Exercito e da Aeronáutica. Todos os eventos, ações políticas e
participação social eram fartamente documentados. Dirigentes partidários,
liderança dos movimentos sociais e estudantis eram documentados em suas mínimas
atividades.
Naturalmente, tínhamos preocupações e cuidados, mas isto era
insuficiente. Com o material hoje disponível podemos verificar a extensão dos
riscos que corríamos, inclusive com as infiltrações policiais entre os nossos
quadros. Nosso trabalho de incorporação de novos militante era cuidadoso,
inclusive fazendo-os passar por longos períodos de aproximação através de
cursos que ao mesmo tempo em que os capacitava politicamente, buscavam conhecer
bem as pessoas. Tem até o caso de uma companheira, que só foi admitida depois
de terminar o casamento com um “língua solta”.
Lembro que tínhamos
muita preocupação com a escuta telefônica e com microfones ocultos, tanto que
muitas reuniões eram realizadas em carros rodando pela cidade ou estacionados a
ermo. Foi assim a com o Movimento de Anistia de Direitos Humanos encaminhada
com uma reunião de Ricardo Brandão com dirigentes estaduais do partido, rodando
em círculos na Cidade Universitária, já tarde da noite.
Para o caso de necessidade
de despiste, conhecíamos todos os locais que tinham uma entrada e duas ou mais
saídas ou se prestassem a confundir eventual seguidor. Lembro o caso da agencia
central de Correios, do antigo Hospital da Noroeste (hoje Hospital do Câncer) e
a travessia do trilho do trem, na Rua Barão do Rio Branco, onde uma escadaria
dificultava a perseguição por carro. Foram lições da vida clandestina, usadas
em favor da luta política e ideológica. Esses locais de despiste, ficamos
sabendo depois, alguns camaradas também os usava para a safadeza de despistar
namorados ciumentos.
FAUSTO MATTO GROSSO
(Esta crônica foi escrita com a
ajuda à memória de Orlando Rocha)
2 comentários:
Conheci alguns. Entre Professores de nível médio da rede pública também.
Parabéns, Camarada Fausto, pela aula de memória, leveza e irreverência com um tema, no mínimo, tabu (como se dizia em nossa juventude). Porque, além do perigo iminente representado pelos “dedos-duros” e “infiltrados” do regime, sempre estávamos às voltas do, digamos, “fogo-amigo”, em que alguém que não gostasse ou não se sentisse à vontade com algum companheiro de movimento (de dentro ou fora de qualquer organização de esquerda), lá vinha o “rótulo”, ao pé da orelha: “parece que fulano é infiltrado, toma cuidado...”
Mais uma vez, suas crônicas nos fazem viajar...
Parabéns, e grande abraço!
Fraternalmente,
Schabib
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