QUEIMEM OS DOCUMENTOS
(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguém vai contar)
De
vez em quando, não se sabe de onde, surgia uma notícia de blitz policial contra
o Partidão na madrugada. Para essa situação já tínhamos sempre pronto um plano
de contingência: esconder o Onofre e queimar documentos comprometedores.
O Onofre, quase sempre
era o mais visado por ser a principal liderança e por ser membro do Comitê
Central do partido. Muitas foram as noites em que dormiu em escritórios,
consultórios ou na casa de amigos. Já meus maiores cuidados eram sempre com
minhas “cadernetinhas” já que eu era responsável pela organização do Partido. Eram
daquelas bem pequenininhas que, tirando a espiral, dava para engolir.
A queima dos documentos
era sentida como uma grande perda. Afinal era material normalmente organizado meticulosamente,
em relação aos quais tínhamos criado afeto. Eram memórias das nossas lutas. Eram
jornais, coleções de documentos reservados, textos para cursos e grupos de estudo
e livros proibidos. Sentíamo-nos com se
vivêssemos os fogos da nossa auto inquisição. Os que mais sofriam eram os
companheiros da área de história.
Adicionalmente, tínhamos
um problema, a militância não sabia exatamente o limite entre o que era e o que
não era material comprometedor. Ao lado da “Voz Operária”, foram queimadas
juntas coleções do Pasquim e gibis do Fradim.
Muitas vezes os
documentos eram também enterrados e, em muitos casos, não mais se conseguiu reavê-los.
Certa vez nos veio a
ideia de construirmos um arquivo supersecreto, cujo local fosse desconhecido
até da direção do Partido. O local escolhido foi a casa de um fiel militante,
Itamar Barreira, considerado fora de ação, pela idade. Foi comprado um arquivo
de aço que foi colocado na sala do professor, no local inocente onde ele dava
aulas particulares. Os documentos lá chegavam depois de uns três ou quatro
intermediários que não sabiam uns dos papeis dos outros. Lembro-me de alguns
dos nomes, a confirmar: Marisa Bittar, Fortunato Moreira, sua esposa Nilda, a
professora Izaíra Tibéri, esposa do nosso secretário municipal de obras. Eu
tinha a réplica das pastas suspensas e de seus conteúdos em uma das minhas
“cadernetinhas”, que nos momentos de perigo era depositada na casa de minha mãe
entre os seus sapatos.
Muitas vezes me vêm à
ideia de que, daqui a alguns séculos, quando os marcianos vierem fazer
escavações por aqui, talvez possam encontrar nosso material subversivo enterrado
e comprovar que já existiu vida inteligente nesse sítio insalubre, mesmo
durante a ditadura.
FAUSTO MATTO GROSSO
Um comentário:
Realmente, é de partir o coração saber que quase toda a memória do PCB e de outras organizações socialistas se perdeu nessas perseguições inquisitoriais no longo período de clandestinidade (e, sobretudo, durante as ditaduras de 1937 e 1964)...
Esses episódios também se reproduziam nas famílias de pessoas desassossegadas em cujas casas havia simplesmente estantes com livros "comprometedores" em vários idiomas. Quando chegavam, no meio da madrugada, tropas de soldados com ordem de revirar tudo, era um deus-nos-acuda. Essa cena pude testemunhar diversas vezes, entre 1967 e 1971, na modesta pensão de meus pais, em Corumbá, pois, além de ser um leitor metódico, era um livre pensador, e não eram poucos os livros de filosofia e sociologia (em árabe, espanhol, francês, inglês e português, alguns deixados para nós por nossos três irmãos/ã mais velhos/a, universitários/a na Bolívia), muitos dos quais (se) acabaram, literalmente, enterrados no fundo do quintal, para nunca mais poder vê-los (e essa tarefa cabia aos mais jovens, pela destreza de pular a janela e enterrar no breu, sem chamar a atenção das assustadoras tropas de soldados).
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