sábado, 21 de maio de 2022

 

O PAPEL PEDAGÓGICO DA TERCEIRA VIA




  Não se sabe ainda o que será da terceira via, aliás, quarta se considerarmos Ciro Gomes, mas uma coisa é certa, ela demonstra que há um campo democrático e progressista mais amplo que o PT.

Tendo claro que o adversário principal é o bolsonarismo, é preciso dar um recado para o PT de que é preciso mudar sua política econômica terceiro-mundista, de favorecimento do sistema bancário, assumir as responsabilidades pelos seus malfeitos e mudar radicalmente seu enfoque hegemonista nas alianças.

A discussão econômica terá que ser voltada para o futuro e não para o passado. O mundo da ex-querda, expressão cunhada por Cristovam Buarque, não mais existe, e foi superado pela realidade da nova economia da informação e do conhecimento.

A crítica dos malfeitos é importante para garantir e criar confiança de que um novo governo não estará também vulnerável à corrupção e vulnerável ao tráfico de influencias. Quanto ao hegemonismo, quem já fez alianças com esse partido já sentiu na carne o que isso significa, inclusive com as tentativas de o PT de controlar tais aliados.

As tentativas para uma candidatura da chamada terceira via passaram por grandes dificuldades, mas parece que terão curso com a concentração em torno do nome de Simone Tebet. Esse espaço estará disponível para a participação da esquerda democrática e das demais forças progressistas. Será uma candidatura de centro.

Simone tem tudo para crescer, tem baixa rejeição e é favorecida pela sua condição de ser mulher. Ganhou projeção com a CPI do Covid onde demonstrou competência técnica e política.

Estamos ainda longe das eleições, já que as campanhas só serão autorizadas a partir de agosto, ou seja, muita agua ainda passará por baixo da ponte. Explorada até o limite essa candidatura da terceira via, de centro, ajudará no sentido da explicitação de que o país não tem só tem dois lados. Só em um segundo turno haverá a condição de agrupamento anti-bolsonaro, se ele ainda estiver na disputa.

 

FAUSTO MATTO GROSSO

Professor aposentado da UFMS e membro do Grupo Conjuntura 

 

sábado, 16 de abril de 2022

 


                             “VOCÊ ME AJUDA EU TE AJUDO”




A revelação recente da existência de um esquema de pastores dentro do ministério da Educação expõe uma maneira de ser do bolsonarismo. Revela uma relação promíscua entre o governo e algumas igrejas e pastores evangélicos que acontece em várias outras áreas da administração. É preciso lembrar que tivemos outra manifestação desse problema no ministério da Saúde, com a ação de pastores lobistas que influenciavam a compra de vacinas pelo Governo. Parece que estamos diante de um grande escândalo que já tem sido chamado de bolsolão.

O lema do lobista, como já foi gravado no caso do Ministério da Educação é “você me ajuda que eu te ajudo”, ou seja, uma troca de favores às custas de verbas públicas, o que não é novidade no caso brasileiro. O governo ajuda os pastores, os pastores ajudam os prefeitos e estes devolvem votos e barras de ouro, que não se sabe onde irão parar.

Esse sistema é muito parecido com o da relação governo e deputados federais, através das famigeradas emendas parlamentares. Os parlamentares que ajudam o governo nas votações recebem verbas para levar às prefeituras que pretendem cooptar. Essa maneira clientelista de fazer política destrói a eficácia das políticas públicas e forma a base para a corrupção. No atual orçamento esse sistema de privatização do dinheiro público vem acobertado pela absoluta falta de transparência de uma parte substancial que forma o orçamento secreto, onde não se sabe quem fez a emenda e quem é o beneficiado.

Esse sistema de troca de favores têm raízes profundas na sociedade brasileira, vem desde o tempo do coronelismo. O sistema coronelista juntava coerção com cooptação. Era o coronel quem permitia o acesso a certos benefícios sociais. Essa era a sua moeda de troca, por isso era odiado, mas também amado.

O escândalo dos pastores está motivando uma iniciativa de senadores para a criação de uma CPI sobre assunto, mas o governo joga pesado na sua inviabilização conseguindo inclusive que três senadores retirassem as suas assinaturas da petição inicial. Outra frente de resistência do governo é a negativa de transparência na agenda presidencial, com o que se procura esconder o intenso acesso de pastores diretamente ao Presidente. A agenda presidencial passou a ser tratada como assunto de segurança nacional, protegida pelo sigilo.

Naturalmente, nem todas as igrejas evangélicas estão envolvida nessas falcatruas. Trata-se de alguns maus pastores, espertalhões que tentam aproveitar da situação de termos um presidente e um governo com quatro ministros declaradamente evangélicos e um juiz do Supremo Tribunal Federal indicado por ser tremendamente evangélico. Há resistência a esse tipo de prática em amplos setores da igreja, que tem motivado a manifestação de outros pastores denunciando o jogo espúrio, o que deve ser saudado. O eleitorado evangélico também se manifesta criticamente, como mostram as pesquisas. Segundo o Poder Data, 40% dos evangélicos acham o governo Bolsonaro ruim e péssimo.

Se Bolsonaro for reeleito, ele terá o direito de indicar mais três ministros do Supremo e estaríamos caminhando para uma situação de controle da Justiça, semelhante ao da Venezuela de Chaves e Maduro.

Enquanto isso, Deus tudo vê. HEBREUS 4:13

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro Civil, professor aposentado da UFMS e membro do Grupo Conjuntura MS

 


 

 

sexta-feira, 4 de março de 2022

 

A GUERRA NA UCRÂNIA


A Invasão da Ucrânia, levada a cabo por Vladimir Putin merece o repúdio de todos os pacifistas e democratas. Revela um anacronismo saudosista do que foi o império russo e a antiga União Soviética. A resistência do povo ucraniano está escrevendo páginas de glória já vividas em outros episódios recentes. 

Exemplo disso foi a Revolução Laranja ocorrida entre 2004 e 2005, em resposta às denúncias de corrupção, intimidação por votos e fraude eleitoral direta, durante a eleição presidencial ucraniana de 2004. Também entre 2014 e 2015 no levante popular que levou à deposição do presidente pró-Russia Viktor Yanukovich, deixando feridas profundas que formaram o contexto para a atual invasão russa. Nos dois episódios o povo ucraniano, nas ruas, mostrou a determinação da luta pela democracia. Esse último episódio é relatado com riqueza de detalhes no documentário Winter on Fire do diretor Evgeny Afineevsky.

Ao cidadão comum, entretanto fica sempre a dificuldade de formação de convicção sobre invasão, dada a intensa guerra cultural existente sobre o assunto, que tenta impor uma verdade única, empacotada ideologicamente. O tema é complexo e são vários os aspectos a considerar.

1.        A Rússia de hoje não tem nada a ver com a União Soviética de outrora. É uma potência capitalista comandada por oligarcas corruptos que se apropriaram das empresas estatais no processo de privatização levado a efeito durante o governo de Boris Yeltsin. Putin é expressão desse sistema apodrecido e autoritário.

2.        A invasão da Ucrânia inaugura um novo momento geopolítico do mundo. Antes tínhamos a Guerra Fria mantida pelo equilíbrio do terror entre os arsenais nucleares dos EUA e da União Soviética. Com o desmoronamento dessa inaugurou-se um período em que os Estados Unidos assumiram o papel de único xerife do mundo, e tentaram impor a sua ordem no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria, pelas armas. Agora, a Rússia tenta participar desse jogo, de novo, ressuscitando a Guerra Fria, inclusive ameaçando com o seu arsenal nuclear.

3.        Após o desmoronamento da União Soviética, houve a extinção do Pacto de Varsóvia, entretanto a OTAN continuou existindo e se expandiu para oeste com a incorporação das antigas repúblicas soviéticas ao bloco. O que poderia ser um momento de desarmamento acabou se transformando em uma anacrônica nova Guerra Fria. De órgão de segurança coletiva, a OTAN parece ter se transformado em uma organização estratégica para o controle da energia na Europa. A guerra na Ucrânia tem tudo a ver com isso. 

4.        A Ucrânia sempre teve problemas com a Rússia. Durante o período Stalin essa república foi submetida a uma política rigorosa de requisição de alimentos, que levou fome e morte ao país, deixando cicatrizes profundas anti-Rússia. Alguns historiadores relatam que quando os nazistas de Hitler invadiram o país na Segunda Guerra Mundial, foram saudados como libertadores.

5.        Esse passado pode ser encontrado por trás da existência de numerosos grupos neonazistas proativos no país. A blogueira bolsonarista Sara Winter, presa após liderar o foguetório contra o Supremo Tribunal Federal afirma ter sido treinada na Ucrânia. Nas passeatas, bolsonaristas ligados ao “grupo dos 300” e ao Movimento Brasil Livre (MBL) entoam a palavra de ordem de “ucranizar” o Brasil. Neste exato momento o deputado estadual paulista Arthur do Val acompanhado de um dirigente do MBL estão na Ucrânia postando fotos de suas participações na fabricação de coquetéis molotov. Entretanto é importante distinguir os grupos neonazistas no contexto mais amplo da resistência ucraniana. A Ucrânia luta hoje pela sua autodeterminação e pela democracia, diante de uma Rússia imperialista e ditatorial. Por isso tem merecido um amplo apoio mundial.

6.        O contexto ucraniano é extremamente complexo, por isso a necessidade de uma análise multifacetada. Nessa história não tem mocinhos e bandidos. Concretamente, temos invasores e invadidos, democratas e autoritários. Aí não há dúvidas, deve ser apoiada a luta dos ucranianos e o grande desafio é conseguir o imediato fim das hostilidades e o cessar fogo, para que se possa negociar a paz.

 

FAUSTO MATTO GROSSO

Professor aposentado da UFMS, membro do Grupo Conjuntura MS

 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

 

PARTIDOS E FEDERAÇÕES


O quadro partidário no Brasil tem um pecado original: os partidos não são da sociedade, são entes estatais. Não representam correntes de opinião, mas sim estruturas tuteladas por regras do Estado. Não e livre a organização partidária.

Exemplo disso é o financiamento público, a exigência do cumprimento de regras para registro e funcionamento e a submissão à Justiça Eleitoral. Como resultado temos a despolitização da política partidária, os partidos funcionam como simples cartórios para efeitos eleitorais.

São trinta e três partidos legalizados no TSE, sendo que 23 tem representação no Congresso Nacional. Na sociedade não existem tantas correntes de opinião. É uma necessidade a redução do número de partidos, mas essa mudança deveria se operar segundo as regras da política e não apenas sobre seus aspectos eleitorais.

Agora, no quadro da discussão sobre a federalização dos partidos essa fragilidade fica transparente. Como diz o quase sempre certeiro Senador Cristovam Buarque, os pequenos partidos estão como náufragos que se debatem esperando qualquer navio que passe, não importando a tripulação que o conduz nem o porto para onde segue. Já um partido político tem a obrigação de saber para que porto vai o barco. Para um partido, sobreviver eleitoralmente não significa sobreviver politicamente.

Na realidade, a pulverização partidária é bem maior do que o número de partidos. Sem cobrança da fidelidade partidária, cada parlamentar tem sido um partido de si mesmo, alimentado com emendas parlamentares e favores governamentais. Com a  instituição das federações partidárias esse problema ficará do mesmo tamanho.

Partidos federados unem seus resultados eleitorais para eleger mais deputados e cumprirem a cláusula de desempenho que regula acesso ao fundo partidário. Segundo a regra, as Federações devem agir como um só partido nas instâncias de representação em todo o Brasil por pelo menos quatro anos. Quando federados, as siglas devem ter uma única estrutura de liderança na Câmara dos Deputados. Os partidos, porém, podem continuar existindo separadamente para outros fins, inclusive manter suas burocracias, como sedes, centros de formação política e salários de quadros, assessores e funcionários.

Realizar uma federação é muito difícil. Fosse uma discussão política nacional e programática, tudo seria mais fácil, mas ela tem que acomodar a situação eleitoral em cada Estado, aí é que surgem as dificuldades. O cálculo eleitoral preside essa decisão. Federações e fusões são uma corrida do ouro nas eleições como diz o jornalista Luís Carlos Azedo.

Atualmente diversos partidos estão envolvidos na viabilização de federações. O DEM (28 deputados) já se fundiu com o PSL (54 deputados), criando a União Brasil que deverá ter a maior bancada no Congresso, sendo o maior transatlântico para o Centrão.

Na esquerda a Federação deverá incluir PT, PCdoB, PSB e PV e ainda existe conversações com o PSOL, a Rede e outras legendas, num esforço para integrá-las. Se viabilizada, essa federação será muito forte no Congresso. O PSOL, paralelamente, busca uma federação com a Rede.

 A União Brasil (DEM e PSL), o MDB e o PSDB estão em conversas avançadas para a formação de uma Federação que esbarra na existência de candidaturas conflitantes como a do governador Dória e a da Senadora Simone Tebet. Também participará dessa coligação o Cidadania após recente decisão.

Enfim, o instituto da Federação vai marcar positivamente a política brasileira, mas perde-se a oportunidade de uma mudança de qualidade. Acerta o ex-deputado Paulo Delgado quando aponta: “O País deveria apostar em um novo padrão de maioria política formado por princípios e programas, e não em promiscuidade”.

FAUSTO MATTO GROSSO

Professor titular aposentado da UFMS, membro do Grupo Conjuntura MS

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

 

O QUE QUER JAIR BOLSONARO?


Bolsonaro quer ser reeleito presidente do Brasil. A maior parte dos analistas políticos aponta que isso é uma missão impossível.

O Presidente tem contra si a imagem de ditador, sua desastrosa condução da crise sanitária, a perda da bandeira da ética e principalmente o fracasso de sua política econômica, que levou o país à inflação e ao desemprego em massa.

Dessas variáveis, porém, a que mais ameaça sua presença no segundo turno é o fracasso econômico. A crise econômica deverá ser determinante para o voto dos brasileiros. Para a dura realidade dos preços e do desemprego, não há fakenews que possa resistir.

Recentemente bateu mais um desespero no Palácio do Planalto: as projeções do mercado para a alta do petróleo neste ano, que deve chegar a US$ 100 o barril, com isso o preço do litro da gasolina saltaria para R$ 8,00. Ainda haveria uma grande desvalorização do real frente ao dólar, obrigando o Banco Central a aumentar os juros.

Bolsonaro ainda tem pela frente algumas iniciativas de fôlego para tentar virar o jogo. Tem a seu favor o Auxílio Brasil de R$ 600,00 mensais, que tentará capitalizar politicamente e a mobilização do Brasil Rural. Segundo programado pelo Instituto Conservador Liberal, criado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, teremos este ano a realização em todo o país, de Congressos do Brasil Profundo, testado no fim do ano passado em Rondonópolis, MT. É uma tentativa de organizar o campo conservador rural para apoio ao Mito. Será um belo dueto com as caravanas de Lula.

Mas, apesar disso, Bolsonaro deverá ser derrotado pela inflação nos supermercados e pelo preço nas bombas dos combustíveis.

Entretanto, a ninguém é dado o direito ser ingênuo de que tudo terminará por aí. Bolsonaro tem seu Plano B, a sedição.

Esse foi o caminho tentado por Trump, seu ídolo, quando derrotado.  O Bolsonarismo tentou antecipar isso com o fracassado golpe de sete de setembro. Na ocasião Jair Bolsonaro afirmou que não cumprirá decisões judiciais, ameaçou fechar o Supremo Tribunal Federal, disse que um dos ministros, Alexandre de Moraes, "açoita a democracia", chamou o processo eleitoral sem voto impresso de "farsa" e disse que apenas Deus pode tirá-lo da Presidência.

 Nada mais explicito a respeito do Plano B. É para essa questão que devem estar voltadas as preocupações das forças democráticas. Garantir as instituições e o processo eleitoral, para derrotar Bolsonaro e enfraquecer o bolsonarismo.

Mesmo que não seja eleito, Bolsonaro consolidará em torno de si uma massa fanatizada e armada de cerca de 20% dos eleitores, ou seja, cerca 30 milhões de pessoas, com forte apoio das forças de segurança e da milícia. Só para comparação, a população total da Hungria do primeiro-ministro Viktor Mihály Orbán, seu concorrente a líder mundial da direita, é de apenas 9.835.000 habitantes. Com esse apoio eleitoral, Bolsonaro seria forte concorrente nos principais países europeus.

Depois da queda de Trump, Bolsonaro será o mais forte representante da direita mundial, e já se articula para esse papel. Segundo professor da Universidade Federal do ABC o fundamento da política externa de Bolsonaro é "a aliança com a extrema direita mundial, para fazer do Brasil um polo de difusão dessa vertente". Através dos seus filhos, Bolsonaro tem se articulado com a direita mundial, participando de eventos, visitando e recebendo lideranças da direita francesa, alemã, espanhola, portuguesa e húngara.

Parece difícil imaginar que Bolsonaro possa tirar algum benefício da exploração dessa imagem de presidente mais extremista do mundo. Mas é nessa direção que seu comportamento está direcionado. Mobilizar a bolha bolsonarista para o que der e vier, para o primeiro, o segundo e o terceiro turno. É aí que mora o perigo.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro, professor aposentado da UFMS

Membro do Grupo Conjuntura.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

 

A EXQUERDA E A SUA SINA

 


O Professor Cristóvam Buarque é um frasista emérito. A primeira vez que vi a palavra exquerda foi em um artigo seu de 2016. A palavra voltou a minha mente na recente entrevista de Lula na comparação entre Ângela Merkel e Daniel Ortega. Porque uma pode ficar 16 anos no poder e o outro não pode? Como pudemos envelhecer a esse ponto, como nos afastamos tanto das causas democráticas!

O alinhamento de certa esquerda latino americana, melhor dizendo exquerda é o pior possível: Maduro, Cuba, Daniel Ortega e Xi Jinping. Este detém controle sobre as três esferas de poder mais elevadas do país: Partido Comunista da China, Conselho de Estado da República Popular da China e o Exército de Libertação Popular. Para justificar cada caso temos uma narrativa negacionista. Apoio a ditaduras revela uma esquerda anacrônica, afirma historiador Alberto Aggio, que diz que Lula tem papel ambíguo entre a ideia da revolução e a socialdemocracia.

Essa situação me lembra das denúncias de Kruschov sobre os crimes do stalinismo em 1956. Durante muitos anos, o relatório esteve escondido pelas burocracias dos partidos comunistas, inclusive do PCB. Isso atrasou o processo de nossa renovação política. Só em 1958, através da Declaração de Março, pudemos retomar o compromisso do socialismo pela via democrática.

O mundo vive hoje uma grande crise. Por trás da nova realidade, uma modificação profunda na civilização: a Revolução Científica e Tecnológica, que está enterrando as instituições nascidas da Revolução Industrial, entre elas, os partidos tradicionais de esquerda.

Essa nova era da civilização, baseada nas tecnologias de informação e comunicação, as TICs, surge impactando todas as esferas da vida em sociedade. O mundo se globaliza.  As coisas, que pareciam sólidas, se desmancham no ar. Surgem novos valores, novas práticas e novas regras que demandam novas instituições.

A polarização entre esquerda e direita continuará válida enquanto houver desigualdades e o fundamentalismo liberal.  Essa polarização não é mais suficiente para dar conta do mundo mais complexo. Novas questões se colocam e a política pensada de maneira unidimensional torna-se insuficiente. Há uma demanda por uma visão pluridimensional, considerando outras polarizações, para responder à complexidade crescente.

Nenhum dos grandes problemas contemporâneos pode ser resolvido sem ampla cooperação internacional. Isso está claro na questão ambiental, mas também é válido para o comércio, a circulação de pessoas, os fluxos financeiros, a articulação do conhecimento, o combate ao crime organizado, o clima e as doenças. Nessa questão, há uma clara disjuntiva que opõe nacionalistas, xenófobos e a esquerda globalista, herdeira das melhores tradições internacionalistas.

A questão ambiental contrapõe negacionistas e sustentabilistas estes últimos não aceitam ações predatórias dos homens, responsáveis pela destruição do planeta. Quanto à organização da vida política, há clara contradição entre democratas e autoritários.

Uma organização partidária que se pretenda progressista, no mundo atual, tem de ter flexibilidade organizativa e conjugar os valores da equidade, da democracia, da sustentabilidade, do conhecimento científico e do globalismo. Só assim a política poderá se libertar do sectarismo e da simplificação. E sobreviver.

Um mundo novo pede passagem. Ou a esquerda se conecta, ou não terá futuro.

 

FAUSTO MATTO GROSSO,

Professor aposentado da UFMS,

Membro do Grupo Conjuntura

 

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

 

O SAARA É AQUI



No final do mês de setembro, um fenômeno assustador se manifestou no interior dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. Tendo como epicentro a cidade de Jales (SP), assustadoras tempestades de areia escureceram as cidades em pleno dia.

Tais fenômenos podem ocorrer quando há temperatura elevada, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes. Esse combo pode provocar a formação de áreas de instabilidade, com tempestades de areia que lembram as do Saara.  

 Em nosso país esse tipo de tempestade de areia, ou de poeira, é incomum, mas elas estão surgindo no país cada vez com maior frequência. Neste ano de 2021, devido à seca que quebrou recordes históricos, esse fenômeno se manifestou, principalmente em áreas agrícolas em que, na preparação do solo para a próxima safra remove-se a vegetação deixando a terra nua. Com isso, perde-se o solo consolidado, que une as partículas, deixando-as soltas para serem carregadas pelo vento. Nosso modelo agrícola que planta areia só poderá colher tempestades, de areia.

Esses fenômenos surgirão novamente no próximo ano? Farão parte do nosso novo normal? Especialistas indicam que é bem provável que essas tempestades de areia devam voltar a ocorrer. Os ciclos de calor estão se repetindo a cada ano, da mesma forma a seca anualmente tem castigado nosso rios e reservatórios, provocando uma crise hídrica que tem se repetido anualmente. Todos os cenários apontados para o planeta, indicam o avanço do aquecimento global e mostram um aumento da frequência de extremos climáticos, como ondas de calor, secas, tempestades de alto volume de chuva causando inundações e quebras de safra. É impossível negar esses efeitos das mudanças climáticas em nosso cotidiano.

  Mas além destas, serão determinantes para esses eventos extremos, nosso modo de vida, nosso modo de produção e de consumo. Todos esses acontecimentos climáticos colocam em discussão a habitabilidade do planeta ou de certas regiões hoje povoadas. O desmatamento e as queimadas podem apressar esse processo de degradação, inclusive na Amazônia e no Cerrado.

A adaptação à nova realidade climática vai custar muito caro. Mas, a conta será mais elevada quanto mais tempo forem adiadas as providências. Ainda é tempo, dispomos de conhecimentos científicos e tecnológicos necessários para construir uma sociedade fundada sobre a sobriedade e o consumo sustentável.

  Schumpeter, economista e cientista político austríaco, foi um dos primeiros a considerar as inovações tecnológicas como motor do capitalismo. Criou o conceito de destruição criativa, afirmando que o sistema estaria fadado a destruir o velho para avançar no seu próprio processo de desenvolvimento, nesse aspecto é previsível o sucateamento dos nossos recursos naturais. Nenhum capitalista investe onde é mais necessário, mas sim onde é mais lucrativo. Segundo ele, não há possibilidade de compatibilizar o capitalismo de crescimento com princípios ecológicos. O economista austríaco afirmava que o capitalismo só poderia prosperar em um planeta infinito.

Mas a Terra é apenas um pequeno planeta com 12.742 km de diâmetro, o quarto do sistema solar, perdido no universo infinito. Embora diminuta, protegida pela sua atmosfera, ela abriga um dos bens mais importantes e excepcionais: a vida, tanto a humana, quanto a dos demais viventes. A Terra continuará a existir, independente de nós, terá o mesmo tamanho e seguirá sua trajetória absolutamente indiferente à existência ou não de vida em sua superfície. Isso só interessa a nós humanos.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro, professor aposentado da UFMS

sábado, 2 de outubro de 2021

 

PASSAPORTE SANITÁRIO

A participação de Bolsonaro na 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unida foi um vexame. Sua teimosia terminou em pizza comida em pé nas ruas de Nova York, por não ter o passaporte sanitário para entrar nos restaurantes.

Em Nova York, o Brasil ficou colocado na condição de um pária entre as nações. Nosso presidente é o único entre os 20 líderes do G20 que não tomou a primeira dose do imunizante. Disse que apoiava a vacinação - o que só o fez tardiamente e de maneira relutante - mas marcou posição contrária ao passaporte sanitário.

                Bolsonaro, com o seu negacionismo, opõe mecanicamente o interesse individual ao interesse público, num liberalismo pobre e caolho. As diversas teorias que explicam a origem do estado moderno ensinam que nesse arranjo civilizatório, houve um tempo em que isso já se resolveu. Pela força ou pelo juízo, os indivíduos abriram mão em parte de seu arbítrio para que o Estado o exerça em benefício do interesse coletivo. Não fosse assim conviveríamos com a lei da selva.

Essa compreensão é útil para vivermos na pandemia. O problema não é a liberdade dos que não se vacinam, mas a ameaça que ele representa aos que com ele convivem. Você pode ser individualista, mas o vírus é coletivista.

O passaporte sanitário é o instrumento que diversos países do mundo encontraram para sanar duas questões: dar transparência a cada indivíduo sobre a saúde sanitária dos ambientes onde convive e também induzir a que cada indivíduo se vacine para garantir a sua saúde pessoal e que essa está de acordo com o interesse coletivo.

Bolsonaro está contra o passaporte sanitário, mas pelo Brasil afora ele começa a ser usado, tanto em estados como em municípios grandes e até pequenos. Uma grande força contra esse instrumento é o comércio e suas entidades, normalmente muito coesas e organizadas que influenciam politicamente os governantes. Às vésperas de eleições, os políticos ficam mais vulneráveis.

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 1674, de 2021, de iniciativa do Senador Carlos Portinho (PL/RJ) que cria o Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (PSS). Esse projeto já foi aprovado no Senado e remetido à Câmara Federal em junho deste ano. O Presidente Bolsonaro já anunciou que vai vetá-lo.

Segundo o projeto, governos estaduais poderão utilizar o Passaporte Digital de Imunização como mecanismo de controle sanitário e de acesso a espaços públicos e privados e de meios de transporte ou qualquer local onde haja aglomeração de pessoas como shoppings, restaurantes, shows, academias e outros espaços de uso comum, podendo determinar multas e penalidades. Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), algum tipo de passaporte sanitário já está em uso em 245 cidades.

Na opinião pública existe grande divisão sobre o assunto que, grosso modo, segue a linha divisória entre bolsonaristas e seus opositores. Essa é a guerra do momento. Os dois lados devem elevar a temperatura do debate.         Em torno da questão do Passaporte Sanitário será travada uma luta política renhida.

FAUSTO MATTO GROSSO

Membro da coordenação da Frente Ampla pela Democracia


sábado, 18 de setembro de 2021

 

BOLSONARO, O SAPO E O ESCORPIÃO



A fábula é bastante conhecida.  Um escorpião pede a um sapo que o leve através de um rio. O sapo tem medo de ser picado durante a viagem, mas o escorpião argumenta que se picá-lo, os dois iriam se afogar. O sapo concorda e começa a carregar o escorpião, mas, no meio do caminho, o escorpião acaba por ferroar o sapo, condenando ambos à morte. Quando perguntado pelo sapo por que havia lhe picado, o escorpião respondeu que esta é a sua natureza e que nada poderia ser feito para mudar o destino.

Essa fábula tem sido lembrada a propósito da "Declaração à Nação" escrita pelo Presidente, sob a inspiração de Michel Temer, após o desastroso discurso feito em sete de setembro na Avenida Paulista. Do alto do palanque, Bolsonaro havia esbravejado que não iria mais cumprir as decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Com tal declaração o Presidente habilitou-se ao impeachment e teve que recuar de maneira humilhante para escapar de cassação. Foi salvo por Michel Temer com uma carta elegante de perfil intelectual e político muito acima da linguagem rastaquera da caserna conhecida por Bolsonaro.

Mas, mesmo antes da publicação da sua carta de desculpas, Bolsonaro já ultrajou os seus propósitos inserindo o rodapé “Deus, Pátria e Família”, numa regressão ultranacionalista, corporativista, conservadora, tradicionalista católica e de extrema-direita que nos leva a uma réplica do fascismo brasileiro dos anos 1930 do século passado. Foi uma primeira picada, em Michel Temer, que o ajudara a safar-se da encrenca onde se metera.

A segunda estocada foi no Ministro Barroso a respeito da questão já vencida das urnas eletrônicas. “As urnas são penetráveis, as pessoas podem penetrar nelas", disse em insinuações de cunho homofóbico sobre o presidente do TSE. Foi a pá de cal na credibilidade do Presidente quanto ao compromisso com a carta recém-publicada.

O Presidente está cada vez mais isolado; recentes pesquisas apontam que ele perderia a eleição em 2022 para todos os seus contendores. De um obscuro deputado de sete mandatos, caminha para passar para a história como o pior presidente que o país já teve. Seu destino está preso por um fio ao pouco confiável Centrão, cujas dependências frequentou como parlamentar durante 27 anos de mandato.

A crise vivida pelo país contribui para aprofundar o seu isolamento. A estagnação e a inflação, o preço dos combustíveis e dos serviços públicos, a crise social decorrente do desemprego e da fome, a já anunciada crise de energia e de abastecimento e o isolamento internacional decorrente da política ambiental são marcas da nossa realidade. A CPI da COVID-19 avança desnudando o negacionismo, o crime contra a humanidade, a incompetência gerencial, a corrupção e até, coisa nunca vista, a venda de cargos públicos por lobistas de quinta categoria. Enquanto isso o Presidente não trabalha, vive de criar crises institucionais que ameaçam a democracia e aprofundam o seu isolamento. Fera ferida, ainda pode encontrar energias, cada vez mais escassas, para a sua resistência, mas agora já desarmada.

Fato auspicioso vem da criação de uma ampla frente partidária que envolve partidos de centro, de esquerda e de direita que se unem para ações conjuntas pelo impeachment. As manifestações de rua, já marcadas para os dias 2 de outubro e 15 de novembro, serão uma medida da força dessa articulação, que pode vir a viabilizar o impedimento do Presidente. Pesquisas recentes de opinião pública já indicam que hoje 56% dos brasileiros querem o seu afastamento.

Enfim, no último sete de setembro, Bolsonaro apostou alto, desafiou a democracia brasileira e suas instituições e perdeu. Entre a independência e a morte, optou pela última. Resta esperar que se cumpra sua sina de escorpião.

FAUSTO MATTO GROSSO, da coordenação da Frente Ampla pela Democracia MS.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

 

A MARCHA SOBRE BRASÍLIA




O fascismo surgiu na Itália sob a liderança de Benito Mussolini em 1919. Sua intenção era tomar o poder pela via eleitoral, mas, se fosse necessário, utilizaria a violência para garantir sua ascensão política. O fascismo obteve grande apoio político na Itália no início da década de 1920 por causa de sua atuação no combate ao socialismo.

A Marcha sobre Roma é como se conhece a grande marcha realizada pelos fascistas em 28 de outubro de 1922, em direção capital italiana. Esse evento foi responsável pela ascensão de Benito Mussolini  ao poder da Itália. No dia seguinte à marcha, Mussolini foi indicado para o cargo de primeiro-ministro. Mussolini foi cabo durante a guerra, mas no poder assumiu o cargo de Primeiro Marechal do Império.

Bolsonaro foi deputado federal por sete mandatos. Sua atuação parlamentar sempre foi caracterizada pelo discurso de ódio e de visões que incluem a simpatia pela ditadura militar, a defesa das práticas de tortura  e a defesa dos interesses dos militares, que constituíam sua principal base eleitoral.

Candidato, nunca enganou ninguém na sua campanha presidencial; pregava o armamentismo, o militarismo e o negacionismo. Foi beneficiário do medo da população e da insegurança social existente. Saiu da eleição colocando em dúvida a confiabilidade das urnas eletrônicas pelas quais tinha sido eleito.

No governo, revelou-se um presidente que não estava à altura dos grandes desafios da Nação: a crise econômica e o desemprego, a crise social e principalmente a crise sanitária. O Brasil piora a cada dia, há um clima de desconfiança e baixa credibilidade na economia e na política. O Presidente parece indiferente a isso, inclusive aos quase 600 mil mortos da Covid. Encheu seu governo de militares, mas acabou montando uma máquina pública absolutamente incapaz. Não se preocupa em governar e sim em construir crises políticas e institucionais. Usa o fracasso do seu governo como combustível para um autogolpe.

Não são poucas as semelhanças entre Brasília e Roma. Lá o “Duce”, aqui o “Mito”. Bolsonaro, diferentemente de Mussolini, já tem o poder, mas quer o poder sem limites. Não aceita as instituições democráticas, rejeita os limites da Constituição. Tem convocado e apoiado manifestações contra os outros poderes da República, inclusive com ameaças de invasão, violência física e depredações no Supremo e no Congresso. Segue o modelo desenvolvido por Trump, de quem foi grande admirador.

A Marcha sobre Brasília é hoje uma preocupação no país. É uma marcha da insensatez, capaz de levar o país a grandes conflitos, no limite, a uma guerra civil, que pode dividir o país pelas armas e até e ao enfraquecimento da unidade nacional. Essa situação interessa à Bolsonaro, pois dará justificativa para a intervenção das Forças Armadas, mantendo-o no poder.

Essa marcha tem que ser detida. Os governadores já se manifestaram nesse sentido e tem grande responsabilidade na busca de soluções.  Tem que ser detida essa ameaça à democracia. Marchar sobre Brasília com a intensão manifesta de atacar o Congresso e o Supremo é crime. Marchar sobre Brasília com armas, atenta contra a lei. Faixas e cartazes nesse sentido têm que ser subtraídos dos manifestantes e são prova da intenção criminosa.

Quem quiser quebrar nossas instituições democráticas não pode chegar a Brasília. Se chegar, não pode atingir a Praça dos Três Poderes, se o fizerem não podem se aproximar do Congresso e do Supremo. Se quebrarem as vidraças, Bolsonaro terá alcançado o seu principal objetivo e estaremos todos perdidos.

FAUSTO MATTO GROSO

Engenheiro e professor da UFMS

sábado, 7 de agosto de 2021

 

A NOSSA FRIACA


Neste ano, o frio extremo que vem do Sul atingiu fortemente o Sudeste e parte do Centro-Oeste brasileiro. Ao mesmo tempo o Hemisfério Norte padece com recordes de calor e volume de chuvas. No Canadá, os termômetros chegaram a quase 50ºC e as chuvas muito acima dos padrões inundaram cidades na Alemanha e na China, com grande perda de vidas.

Esses fenômenos parecem desconexos, mas segundo a ciência eles se prendem à realidade das mudanças climáticas. É importante diferenciar o conceito de clima de uma região, do tempo que está fazendo nela. Clima é uma característica dos padrões de comportamento de longo prazo, já a previsão do tempo para amanhã ou para a próxima semana, é uma situação pontual sem maiores consequências. As mudanças do clima colocam em risco a própria sobrevivência do homem na face da Terra.

Não é fácil para o leigo entender as complexas questões do funcionamento do sistema climático com seus fatores e elementos, mas a ciência tem apontado que desde a Revolução Industrial vem aumentando a queima de combustíveis fósseis (petróleo e carvão) e o desmatamento, ampliando na atmosfera a quantidade de gases que ampliam o efeito estufa. Esses gases dificultam a dispersão do calor dos raios solares que atingem o planeta, o que tende a aumentar a temperatura no globo como um todo e tem sido a causa comum desses desastres climáticos. Não que o efeito estufa em si seja o problema, ele é um fenômeno natural que possibilitou a existência da vida no planeta, se tal não existisse, segundo estimativas, a temperatura da Terra seria de 
-18ºC. Entretanto são as mudanças nesse sistema de frágil equilíbrio, causadas pelo homem, que constituem ameaças aos sistemas vivos.

As recentes ondas de frio no Brasil parecem contrariar a afirmação de que a temperatura na Terra está de fato aumentando. Na verdade, é exatamente o aumento médio da temperatura na América do Sul que empurra ar quente para a Antártida que em correntes circulares em sentido horário trazem, no retorno, o ar frio que tem gelado, em ondas, o sul do Brasil. Mandamos à Antártida massas de ar quente e recebemos dela massas de ar frio, segundo asseguram pesquisadores.

Atualmente vivemos uma realidade marcada pelos eventos decorrentes da crise climática, tanto na produção de alimentos como na produção de energia.

As perdas milionárias nas lavouras queimadas ou congeladas pelo frio provocam a redução da oferta de produtos e consequentemente o choque inflacionário nos preços dos alimentos, que afeta duramente as camadas mais vulneráveis da sociedade. Além de fazer os brasileiros tirarem os casacos do armário, a onda de frio que atinge o país também vai obrigar a população a colocar as mãos nos bolsos – só que não para esquentar.

As secas com os reservatórios vazios prejudica a produção de energia e já levaram à utilização das termelétricas para evitar apagão encarecendo as contas de luz dos brasileiros. É como se o Brasil entrasse no “cheque especial” das energias mais caras e poluentes.

Friaca é uma palavra que não existe oficialmente na língua portuguesa. Segundo alguns autores, ela nem deveria ser usada porque não significa nada. Mais radicais, alguns ainda observam que, além de imprecisa, ela é muito feia. Entretanto a palavra tem sido cada vez mais incorporada ao linguajar dos noticiários meteorológicos.  Nos estados do Sul é como dizer: “Piá, pegue a japona que vem friaca aí”.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

 

 

terça-feira, 27 de julho de 2021

 

A CULTURA PECEBISTA

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)

 



Na história política brasileira há um estilo de pensar e agir “pecebista”.

O PCB, que fará 100 anos em março de 2022, nasceu no mesmo ano em que acontecia a Semana de Arte Moderna de 1922, movimento esse que rompeu com os paradigmas elitistas e marcou a cultura brasileira. Vários intelectuais que fizeram parte desse movimento se filiaram a esse partido.

Ao longo do tempo, esse passou a ser o caminho natural de grande parte de intelectuais brasileiros, fato que permitiu ao PCB ter massa crítica para pensar sua política a partir do exame da realidade brasileira, longe da cópia de modelos pensados em outras realidades. Pensar a realidade brasileira para a definição da sua política passou a ser um dos pilares da cultura pecebista.

A cassação de seu registro em 1948 levou o partido a um breve período de radicalização esquerdista, mas, já em 1958, a partir da Declaração de Março, o partido rompe com o stalinismo, indica o caminho democrático para a revolução brasileira e começou a pleitear o seu reconhecimento legal para participar da luta política como qualquer outro partido. Para isso, muda o nome para Partido Comunista Brasileiro (PCB) já que com o nome antigo havia sido cassado. Esse compromisso com a democracia foi o segundo pilar da sua cultura política.

A resposta ao Golpe Militar marcou um divisor de águas na esquerda brasileira, com o surgimento de vários grupos de luta armada. O Partidão manteve-se firme na política de frente democrática. Condenou a luta armada e apontou o caminho da unidade das forças democráticas para a conquista da Anistia, da Constituinte e de eleições livres e diretas. Esse foi o caminho vitorioso da redemocratização. Essa política de frente democrática ampla se transformou na via vencedora na luta contra a ditadura. Foi a insistência nessa política de frente democrática no pós-64 que lhe deu confiabilidade e uma influência bem maior que o seu verdadeiro tamanho. Foi a afirmação da luta política, e não o caminho da das armas para a revolução brasileira.

A afirmação da luta política diante dos descaminhos da luta armada constituiu o terceiro pilar do pecebismo.

         Esses três elementos, pensar a realidade brasileira, defender a democracia e acreditar na política como forma de luta, constituem os elementos fundantes da cultura pecebista. Essa cultura influenciou a política brasileira por muitos anos, e esparramou-se para além das fronteiras partidária.

Para além do lugar que ocupam na história nacional, os comunistas do PCB deixaram várias contribuições para o pensamento de esquerda no Brasil, dentre elas, a mais importante é a da valorização da política e da democracia no campo da esquerda. O pensamento político do PCB não se reduziu a mero reflexo de uma ideologia exógena, forjou um tipo de atuação influenciado por valores democráticos e particularmente por condutas unitárias.

As crônicas que colocamos nesse livro dizem respeito à história de vida de muitas pessoas com as quais compartilhamos a mesma luta política. A cultura pecebista forjou uma camaradagem sólida entre os personagens dessas histórias, que hoje perpassa as fronteiras partidárias e se tornou um valor afetivo.

 O INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MOSCOU

                                                Marisa Bittar

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)



 

   O Instituto de Ciências Sociais de Moscou, anexo ao Partido Comunista da União Soviética era a escola que recebia camaradas de todo o mundo para cursos de formação. Seu imponente prédio, situado na esquina da Leningradskii Prospect, 49 (Avenida Leningrado) era composto por salas de aula, biblioteca, espaços comuns de convivência, um belo anfiteatro, restaurante, ginásio de esportes, além de uma Clínica e outro prédio contíguo onde ficavam as moradias. Em missão do PCB-MS para me aprimorar no trabalho de educação política, ali cheguei em 1981, me deparando com um mosaico cultural incrivelmente diverso composto por países das mais diferentes regiões do planeta.

Todas as turmas passavam primeiro pela dasha, isto é, casa de campo, onde realizavam exames médicos, familiarizavam-se com a vida que iriam ter e começavam a aprender o russo. Em uma das aulas iniciais, o professor nos apresentou o primeiro verbo que deveríamos conjugar: o verbo trabalhar. Demonstrando expressão de surpresa pensei: o primeiro verbo não seria o “ser”?. Adivinhando meus pensamentos, o professor proferiu a bombástica frase: “No socialismo ninguém vive sem trabalhar!”

  Da dasha, fomos para o Instituto. Ele era organizado por cátedras e cada uma delas composta por doutores de Estado, cuja distinção era o domínio em três línguas estrangeiras. Nessas cátedras, os professores se organizavam pelos idiomas e turmas nas quais lecionavam; e os estudantes constituíam-se por países. O currículo era composto por História do Partido Comunista da URSS e do Movimento Operário Internacional; Filosofia; Economia Política; Teoria Política, além das aulas de russo, mas variava de acordo com o tempo que cada coletivo permaneceria na escola. A cada disciplina era destinado um dia específico da semana, e a aula durava a manhã toda. O professor expunha o assunto, esclarecia dúvidas e, depois, determinava a nossa tarefa. Portanto, tínhamos muitas horas de aula e outras tantas de estudos individuais que deveriam ser apresentados na aula seguinte de forma organizada, isto é, com base em anotações e sínteses das leituras recomendadas.

  Cada turma tinha professores que falavam a sua língua. Assim, a maior parte das nossas aulas era ministrada por professores que falavam português. Aqueles que não falavam eram acompanhados por tradutores (pirivôtchi) que haviam aprendido o português de Portugal. Por isso, já nas primeiras aulas, nós brasileiros, de forma bem-humorada, tratávamos de lhes comunicar que, a partir dali, nós os ensinaríamos o verdadeiro português!

  Nossa fama era a de sermos os mais brincalhões e comunicativos da escola, nem os italianos ganhavam de nós. Mas exibíamos também traços negativos de nossa cultura. Isso ficava claro, por exemplo, quando os professores nos cobravam a tarefa e recebiam de alguns a seguinte justificativa: “Professor, eu não tive condições de ler essa bibliografia porque precisei fazer exame médico justamente nesse dia!” A esperança de que essa desculpa fosse indiscutivelmente aceita, residia no fato de que todos no Instituto sabiam que ninguém lá dentro mandava mais do que as médicas e nenhuma autoridade era mais temida do que a  Doutora Iulia! Todos, indistintamente, entre alunos e professores, já tinham passado pelo menos uma vez pela experiência de estarem despreocupadamente no hall de convivência quando, de repente, eis que surgia a linda médica, que, ao passar por determinada pessoa que estava em falta com ela, apenas lhe advertia em tom doce: “Amanhã, obrigatoriamente, Clínica!” O tom que ela punha na palavra “obrigatoriamente” não deixava dúvidas: você tinha de ir mesmo! Todavia, essa “culpa” que espertamente se esperava atribuir à Doutora Iulia pela tarefa não realizada, quando apresentada na aula do professor Kapustin, que falava português e conhecia pessoalmente a nossa cultura, recebia severa reprovação que me deixava envergonhada: “Kapustin conhece muito bem os brasileiros!”

  Diferentes atividades aconteciam no Instituto. Além de nossas aulas e tarefas de estudo, cada coletivo programava encontros bilaterais de seu interesse, o que enriquecia nossa experiência política e cultural, além da oportunidade de novas amizades. Às segundas-feiras de manhã, em vez das aulas, todos os coletivos se reuniam no lindo anfiteatro para uma conferência, festividade cívica ou apresentação cultural. As de música e dança eram as nossas preferidas. Antes de qualquer dessas atividades, todos cantavam a Internacional, de pé, cada coletivo em sua língua.

  Duas viagens de estudo complementavam o currículo: uma delas, prêmio para todos, era a belíssima Leningrado onde ficamos sem fôlego ao entrarmos no Palácio de Inverno (Hermitage). Ainda bem que Lênin advertiu os revolucionários quando lá entraram para a tomada do poder: “Não destruam nada, temos de preservar tudo isso para as próximas gerações, é patrimônio cultural do nosso povo”. A segunda viagem se destinava a uma das 15 Repúblicas soviéticas. À minha turma, coube a Armênia, um choque de realidade que nos deu a lição de como era difícil edificar o socialismo com a pobreza herdada do regime anterior.

  Para completar, havia os sábados de trabalho. Limpar ruas; empacotar medicamentos; ajudar alguma fábrica a cumprir suas metas de produção, enfim, esse trabalho era obrigatório para todos e encarado pelo Partido Comunista da União Soviética como uma “grande iniciativa” desde o início da Revolução. Afinal, “no socialismo, ninguém vive sem trabalhar”.

  Num frio alvorecer de março, em 1982, chegou a hora de voltar para casa. Sob rígidas normas de segurança, embarcaríamos no aeroporto de Moscou. Com o camarada Mário César Ferreira, o Cecéu, olhei para trás a fim de fotografar o Instituto com os olhos. Jamais passaria pela minha cabeça que em menos de uma década a União Soviética se desintegraria e que o nosso amado Instituto se tornaria uma Faculdade de Finanças, na qual, juntamente com Amarilio Ferreira Jr. voltamos em 2012. Na mesma pracinha onde havíamos chegado em 1981, agradecemos ao PCB por ter proporcionado a nós e a tantos outros camaradas de Mato Grosso do Sul uma experiência inimaginável que tornou nossas vidas infinitamente mais ricas.