quinta-feira, 14 de outubro de 2004

PARTICIPAÇÃO – UMA ABORDAGEM TECNO-POLÍTICA

Francisco Fausto Matto Grosso Pereira
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Resumo: Partindo-se da reflexão a respeito das mudanças provocadas pela revolução científica e tecnológica e de seus reflexos como a globalização e a localização, aponta-se o esgotamento das formas autoritárias e centralizadoras da ação estatal e a emergência de uma cidadania global-local que busca afirmar sua participação como força motriz dos processos de transformação. Esse quadro de afirmação do Poder Local como condutor do Desenvolvimento Local requer crescentemente a formação de especialistas tecno-políticos capazes de contribuir, criativa e positivamente, para a afirmação da participação cidadã.
Palavras Chaves: participação; cidadania; poder local; orçamento participativo; metodologias participativas.
Considerações iniciais
O século XX foi fruto da Revolução Industrial. A introdução da máquina na produção, uma simples extensão mecânica do braço humano, engendrou a modernidade, com seu conjunto de paradigmas produtivos e de relações sociais e humanas que marcaram profundamente o processo da civilização (Kennedy, 1993). As fábricas, os sindicatos, os partidos políticos tais como os conhecemos hoje, o fortalecimento dos Estados Nacionais, foram frutos desse momento histórico importante.
O último quartel do século passado foi marcado pela intensificação do uso da ciência no processo produtivo. Surge a utilização, dentro da fábrica, do computador, do sensor eletrônico, do robô, agora com um significado muito maior: esses dispositivos significam a extensão do cérebro e dos sentidos humanos ao processo produtivo. Se as máquinas foram capazes de produzir a modernidade, os novos aparatos tecnológicos estão redesenhando os paradigmas e apontando, embora de maneira desigual e assimétrica, para um novo salto civilizatório.
Apesar da continuidade das mazelas estruturais que acompanharam a sociedade capitalista, com seu cotejo de exploração e desigualdades, inegavelmente vivemos a afirmação de uma forma nova de sociedade, organizada em rede, conformada pelos meios de informação, uma sociedade da conectividade global pela internet, do acompanhamento dos fatos em tempo real, forjando um conjunto de relações e novas formas de organização que vão penetrando as empresas, as ONGs, os organismos estatais e o conjunto da sociedade (Toffler, 1990).
A crise que vivemos hoje representa exatamente esse momento de transição, quando os paradigmas velhos não dão conta mais dos novos problemas e os paradigmas novos ainda não se tornaram dominantes. Vivemos a luta do novo contra o velho, um embate sobre a conformação do futuro.
1. Um novo caráter da cidadania e da participação
Quando três anos atrás as ruas das principais cidades do mundo encheram-se de pessoas protestando contra a iminente invasão do Iraque, sem seguir a um comando único, sem estarem atreladas a nenhuma ideologia específica, vivenciávamos, nessa forma de participação, o fortalecimento de uma nova forma de cidadania, a cidadania global. Essa situação representava um indício do surgimento de uma contraface cidadã à mundialização conduzida pelo mercado.
Vivemos a afirmação crescente de uma sociedade civil mundial, que apresenta sinais ainda frágeis, mas crescentemente significativos como o Fórum Social Mundial e a articulação internacional dos movimentos pela paz, pela defesa do meio ambiente, em defesa dos direitos humanos, entre outros.
Mas a mundialização caminha paralelamente a localização. O processo de enfraquecimento dos Estados Nacionais e a sua articulação crescente em Blocos Regionais vem sendo acompanhado da afirmação do local como centro da dinâmica social e política.
Cada vez são maiores as ocorrências de ações de desenvolvimento local, construídas por processos novos e afirmativos do Poder Local. A participação cidadã caminha para a superação do paternalismo e para a afirmação crescente da autonomia e da responsabilidade social das comunidades.
Afirma-se a possibilidade de construção de uma democracia de proximidade, com a participação dos cidadãos na gestão de políticas públicas, fortalecendo-se a esfera pública não-estatal, através de ONGs e toda a sorte de instituições. O poder sobre essa esfera pública, crescentemente, deixa de ser exclusivo das instituições estatais, principalmente diante de manifestos sinais de esgotamento do atual modelo de financiamento e gestão do Estado.
Não se trata, é claro, do fim do Estado, mas da crise que exige a sua reforma radical. Refiro-me, naturalmente, a um processo em construção, ainda não dominante, mas com perspectiva da afirmação de novos paradigmas em contraposicão aos modelos tradicionais (Osbone, 1994).
A cidadania nova, cada vez mais, vai se tornando global e local (Busatto, 2003).
2. O contexto brasileiro
A Constituição de 1988, que consagrou e deu legalidade a um conjunto de aspirações democráticas e cidadãs, representou um grande avanço no processo de participação popular.
Embora esse processo ainda esteja inconcluso e muito se tenha ainda a avançar na sua implementação, a democracia participativa ganha paridade com a democracia representativa com a criação de mecanismos como as iniciativas populares de leis, plebiscitos, audiências públicas como espaço privilegiado para o exercício da crítica e do debate.
O processo de democratização possibilitou ainda a aprovação de inúmeras leis que favorecem a participação, o controle e a gestão da comunidade nas políticas públicas. Entre essas, pode-se citar como exemplo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a Lei de Organização da Assistência Social – LOAS, a Lei do Sistema Único de Saúde – SUS; a Lei da Defesa do Consumidor, o Estatuto da Cidade e o Estatuto do Idoso.
Desta forma está criada uma ampla rede de participação social que envolve a cidadania no âmbito das políticas públicas, definindo uma esfera pública não estatal, de crescente importância.
A busca das formas mais adequadas para institucionalizar e afirmar essa esfera pública não-estatal está no centro do desafio político contemporâneo. Uma dessas tentativas tem sido a implementação do Orçamento Participativo.
3. O Orçamento Participativo – seu valor e sua superação
O chamado orçamento participativo, carro chefe das administrações municipais petistas, representou uma tentativa de avançar a participação popular na gestão pública (Genro, 1997). Se, de um lado, representou uma esperança de democratização das decisões, do outro, sua implementação esbarrou no contexto da crise de financiamento das políticas públicas e também numa visão estatista da gestão pública.
A experiência da sua implementação, de uma forma geral, levou a frustração, mostrando os seus limites e a necessidade de sua superação.
O processo de construção do Orçamento Participativo limita a participação popular à repartição dos escassos recursos do orçamento público, feita em uma lei meramente autorizativa. Esse é o limite do OP.
O espaço público criado com o OP, tal como tem sido praticado, é um mero prolongamento do velho Estado centralizador, por sua vez uma simples extensão do partido hegemônico, que pretende controlar a sociedade.
O orçamento público, nem de longe, esgota os recursos da sociedade, porque a sociedade tem outros recursos, humanos, materiais, de conhecimento, de gestão, que o orçamento público e a visão estatal não conseguem mobilizar (Busatto, 2003).
O grande desafio da gestão democrática é caminhar rumo à elaboração de um orçamento social, um orçamento, que engloba os recursos públicos sim, mas também o imenso capital social da comunidade: os recursos da iniciativa privada, do terceiro setor, do voluntariado, do conhecimento, da universidade, dos institutos de pesquisa, que muitas vezes não são chamados a colaborar e participar da governança.
Esse orçamento social deve estar necessariamente ligado a um plano elaborado com visão estratégica, com ampla participação da cidadania, que diga respeito a passos concretos a serem dados hoje, mas balizados por uma cumplicidade em torno da construção de uma utopia mobilizadora e transformadora. O Plano Diretor do município pode ser esse elemento balizador e articulador da mobilização social e distribuidor de responsabilidades cidadãs .
A figura do cidadão que escolhe os governantes, que reivindica, deverá avançar para a figura do cidadão que governa. Nas experiências de governança social local, a formação desse espaço público é absolutamente respeitosa à autonomia dos movimentos sociais, dos cidadãos organizados, é uma visão nova, horizontal, totalmente democrática e não manipuladora, ao contrário de como tem sido a experiência concreta do OP até hoje.
Isto não significa deixarmos de aproveitar essa experiência do Orçamento Participativo, mas sim fazê-la romper com seus próprios limites. Significa não se submeter à lógica atual do OP, que é uma lógica estatal, atrasada, mas sim criar uma lógica que empodere a sociedade como requer essa nova etapa que vive a sociedade brasileira e mundial.
O empoderamento da sociedade, a afirmação do Poder Local, deve ser a conseqüência do esforço de aprofundamento e de radicalização da democracia.
4. A abordagem da radicalidade democrática
Dentro de uma visão de radicalidade democrática o desafio consiste na construção de mecanismos de emponderamento da sociedade, de construção do Poder Local (Almeida, 2004) para influenciar o conjunto das decisões das políticas públicas e não apenas da elaboração do orçamento estatal autorizativo, que normalmente não sinalizam para utopias transformadoras de longo prazo. A elaboração de Planos Diretores e de Agendas 21, quando construídas com ampla participação cidadã, pode cumprir esse papel.
Muito importante também é observarmos a emergência de uma nova prática política, cooperativa, solidária, articuladora e empreendedora. Exatamente a negação da prática política que predomina hoje, clientelista, fisiológica, assistencialista. Esse é um desafio que hoje coloca em questão a cultura política que herdamos, coloca em questão a prática política vigente hoje nos partidos tradicionais e exige dos novos atores políticos, a capacidade de articulação, de cooperação, de construção de relações solidárias, que tenham a capacidade de emponderar à sociedade (Almeida, 2004).
Aqui é importante dizer que o Poder Local não é o poder da Prefeitura, não é o poder da Câmara de Vereadores, o Poder Local é efetivamente o poder da sociedade organizada. Essa é uma questão central que precisa ser aprofundada, porque muitos são aqueles que ao falar em fortalecimento do Poder Local, falam do fortalecimento da Prefeitura. Essa visão é uma visão velha de quem ainda não se desvencilhou de um conceito velho de Estado, ultrapassado e absolutamente disfuncional diante da nova sociedade que está ai.
Nesse sentido, para fortalecer o Poder Local é preciso fortalecer o poder de uma nova articulação, inédita na nossa história, de todos os novos e velhos atores sociais locais: a Prefeitura sim, a Câmara de Vereadores sim o Ministério Público sim, o Poder Judiciário sim, as autoridades, os funcionários públicos federais, estaduais, que atuam no município sim, mas também a iniciativa privada, as organizações sociais e entidades do terceiro setor, os conselhos públicos de saúde, de educação, do idoso, da reforma agrária e tantos outros que existem aí, as universidades, os institutos de pesquisas, os meios de comunicação. Ou seja, o fortalecimento do Poder Local é a articulação de um novo poder municipal, um poder da sociedade civil organizada, envolvendo e ampliando o velho Estado, mas envolvendo também os novos atores sociais que hoje experimentam experiências concretas de governança (Almeida, 2004).
Hoje temos um voluntariado organizado que trabalha voltado para as causas públicas, hoje temos instituições do terceiro setor e entidades sociais que trabalham para as causas públicas. Hoje temos também, e é o fato mais importante dos últimos 15 anos, empresas que assumem uma dimensão socialmente responsável (Bussato, 2003), ou seja, começam também a se envolver com causas públicas. Então, trazer esses novos atores sociais, comprometer também as universidades e institutos de pesquisa com este empoderamento e esta nova articulação, trazer os meios de comunicação para assumirem também esta dimensão da responsabilidade solidária de fortalecimento do Poder Local, esta é tarefa central dos atores democráticos.
A idéia aqui é percebermos que surge na sociedade um novo ator político, um novo ator social, que não é mais o cidadão consciente que vota nas eleições apenas, não é mais o cidadão consciente que reivindica seus direitos apenas é mais do que isto, é mais do que o cidadão eleitor, é mais do que o cidadão que reivindica, é o cidadão que governa, o cidadão gestor. Nesse sentido, se estará avançando para a concepção de uma verdadeira co-gestão ou de uma autogestão, a sociedade começando a experimentar a experiência de se autogovernar, num conceito de empoderamento social que é absolutamente novo em termos de concepção de poder político.
A fonte originária do poder, que é o próprio cidadão e cidadã, de forma cada vez mais firme, já não aceita delegar o poder cegamente para um governante a cada quatro anos, ele quer governar todos os dias, ele quer participar do governo todos os dias, ele não quer só fiscalizar ele não quer só cobrar, ele quer, também, participar das decisões e ajudar a executá-las. Esse é o fato novo que surge na sociedade, é isso que está acontecendo. A área política tem que estar com a mente e os olhos abertos, sensíveis a esta transformação que vive a sociedade.
É importante observar que o processo de fortalecimento de Poder Local gera novas arquiteturas públicas, isso é novo também. Novas arquiteturas públicas, não estatais, que estamos chamando de novas formas de Governança Social Local. São essas novas arquiteturas públicas que se desvencilham do velho Estado e começam a gerar instâncias de poder horizontais e compartilhadas no seio da sociedade. Elas surgem aqui e ali através de conselhos, de pactos, de comitês, de consórcios, de ONGs, de uma infinidade de nomes. São experiências inovadoras nas quais se percebe a sociedade vivendo experiências concretas desta governança de novo tipo.
O desafio consiste em dar organicidade, consistência a essas experiências novas, contribuir para dar-lhes escala; para que se transformem em experiências, hoje municipais, amanhã regionais, depois estaduais e quem sabe, um dia, nacionais, quando forem dominantes e, quem sabe, dirigentes do País.
5. Metodologias participativas
A emergência dessa cultura nova de participação ampliada da cidadania tem provocado muitos impactos nas formas tradicionais de organização dos projetos de desenvolvimento e de governo.
Os próprios organismos internacionais de cooperação e fomento, tais como BIRD, BID, OIT, GTZ e outros, passaram a exigir a participação da população na elaboração dos projetos. Avança-se assim de uma tradição de elaboração de projetos de desenvolvimento com formulação meramente técnica para uma concepção participativa, que muda a natureza desses projetos para uma formulação com caráter tecno-político. Cada vez mais teremos que conviver com siglas como PES, DRP, ZOOP, DRUP, DOP, MAPP do B, etc que começam a se constituir no arsenal para o enfrentamento dos novos processos de construção compartilhada de projetos (Brose, 2001).
Constrói-se assim uma transição das formas mais elementares para as formas mais avançadas de participação cidadã. Sherry Arnstein (Arnstein, 1969, apud Brose, 2001) analisando em 1969, analisando as causas do grande número de fracassos dos projetos de inclusão social nos EUA, construiu uma Escada da Participação Cidadã, constituída de 8 degraus: manipulação (os beneficiários são conduzidos de forma “educativa”), terapia (condução do processo de forma a manter os beneficiários sob controle), informação (pode ouvir e falar mas não participa da decisão), consulta (as opiniões servem para referenciar as decisões), pacificação (trabalha-se lideranças descoladas da representação), parceria (há compartilhamento de decisão e negocia-se uma esfera de cooperação), delegação de poder (uma sub-rogação de poderes aos atores, mas a partir da decisão da autoridade) e controle pelo cidadão (onde este exerce sua autonomia e assume a totalidade da iniciativa).
Necessário se faz a preparação de quadros tecno-políticos com uma nova cultura, novas atitudes e novos comportamentos, capacitados para a condução dos processos participativos (Cardioli, 2001) e que tenham capacidade de mobilizar, motivar, organizar gerenciar e negociar conflitos e que tornem mais transparentes e democráticos os processos de decisão, planejamento, execução, avaliação e encaminhamento de decisões democraticamente construídas.
Não se trata da eliminação das hierarquias, tampouco se propõe níveis igualitários de poder. Existem diferentes níveis de participação. Trata-se do desafio de tornar as hierarquias virtuais, fortalecendo as responsabilidades dos atores sociais e elevando-os aos níveis mais altos do processo decisório, buscando uma interação entre os que decidem, os que executam, e os que serão atingidos.
6. Conclusões
A civilização atravessa um momento de crise representado pelo entrechoque de paradigmas. “Tudo que é sólido se desmancha no ar”. As maneiras tradicionais de governar, de construir legitimidade, de conduzir conflitos já não dão conta da complexidade da sociedade articulada em redes globais e locais (Osbone, 1994).
Um novo cidadão, global e local emerge, embora de forma desigual, nas diversas esferas societárias e se propõe a disputar o poder centralizado no Estado tradicional.
É nesse contexto que se discute o fortalecimento do Poder Local, que na verdade nada mais é do que a construção de um novo modelo de poder, público mas não estatal, radicalmente diferente desse modelo centralizado, hierarquizado, fragmentado, fechado e burocrático que herdamos da sociedade industrial.
Naturalmente, estamos nos referindo a um processo novo que será fruto de uma transição das práticas tradicionais de poder para o poder democrático formado com a cumplicidade da cidadania; um processo de substituição do sistema de dominação por um sistema de hegemonia intelectual e moral (Gramsci, 1980) ampliada, compartilhada e democrática.
Referências bibliográficas
GRAMSCI, Antônio. “Maquiavel, a Política e o Estado Moderno”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1980.
KENNEDY, Paul M. “Preparando para o século XXI”. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda, 1993.
TOFFLER, Alvin. “PowerShift: mudanças do poder”. Rio de Janeiro: Editora Record, 1990.
OSBORNE, David e GAEBLER, Ted. “Reinventando o governo”. Brasília: Editora MH Comunicação, 1994.
FRANCO, Augusto de. “Pobreza e Desenvolvimento Local” . Brasilia: Arca, Sociedade do Conhecimento, 2002
BROSE, Marcus. “Metodologia Participativa, uma introdução a 29 instrumentos”. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001.
CORDIOLI, Sérgio. “O Enfoque Participativo”. Porto Alegre: Editora Genesis, 2001.
GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan. “Orçamento Participativo, a Experiência de Porto Alegre”. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.
ARNSTEIN, Sherry. “Leadder of Citizen Participation”.p.216-224. Journal of the Américan Institute of Planners. Portland, julho 1969.
BUSATTO, Cézar. “Responsabilidade social no setor público: um caminho para a democracia” em: O PPS e o Poder Local. Porto Alegre: Publicação da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2003.

ALMEIDA, Francisco Inácio et alli. “Poder Local: o desafio da democracia”. Brasilia: Fundação Astrogildo Pereira, 2004