terça-feira, 16 de março de 2021

 


TESOUROS PERDIDOS

Marisa Bittar

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que ninguèm vai contar)


  Como jovem militante do PCB em Campo Grande desde a segunda metade da década de 1970, o Partidão foi uma grande escola para a minha vida. Nele, concomitantemente às Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (hoje UCDB), eu fazia um curso de História paralelo ao dos bancos da Faculdade.

  Uma das marcas do PCB nessa época era a sua política de formação que, aqui em Mato Grosso do Sul, era levada muito a sério. Tínhamos o Centro de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (CEPES) que funcionava no centro da cidade, na Rua Rui Barbosa, onde realizávamos cursos e palestras. Também mantínhamos Grupos de Estudos, que eram realizados nas casas de nossos companheiros.

` Além disso, o Partido tinha suas próprias publicações e documentos que, por segurança, para serem lidos, passavam pessoalmente de mão em mão por todas as bases e depois voltavam ao poder do Comitê Estadual que, então, providenciava local seguro para armazená-los ou então os devolvia ao Comitê Nacional.

  Aqui em Campo Grande, ficavam escondidos em lugares considerados seguros, um deles a minha casa na Rua Padre João Crippa. Eu cuidava com imenso zelo dessa minha tarefa e, para meu desgosto, esse tesouro que eu protegia foi destruído três vezes devido às suspeitas de que a ditadura recrudesceria. Nessas ocasiões, o procedimento era sempre o mesmo: um dos camaradas, que neste caso específico era Amarilio Ferreira Jr., vinha até minha casa e passava a ordem do Comitê Estadual: desfazer-se de tudo. Nenhum de nós jamais ousava fazer perguntas quanto mais não confiar totalmente naquelas decisões da direção, leia-se Fausto Matto Gosso, Onofre da Costa Lima e Carmelino Rezende.

  Da primeira vez, durante a madrugada, decidimos queimar tudo em casa mesmo, o que foi um tremendo risco. Da segunda, juntamente com Paulo Cimó, nos desfizemos de todos os papéis, já bem picadinhos, num lugar ermo próximo ao Córrego Segredo (ainda bem que era o Segredo e não o Prosa!). Mas da terceira vez, quando a mesma ordem chegou pelo mensageiro de sempre, resolvemos conjecturar por conta própria que talvez não fosse haver endurecimento do regime nem a polícia fosse bater em nossas casas, já que das outras duas vezes, felizmente, a suspeita tinha gorado. Por que então iríamos destruir tudo? Queimar nossas preciosidades de novo? Resolvemos, assim, adotar uma solução criativa e inovadora, diferente das anteriores: fomos para o fundo do quintal, que era de terra, e começamos a cavar um lugar onde, no futuro, pudéssemos encontrar todo o tesouro enterrado. O local escolhido foi próximo a uma goiabeira e lá trabalhamos em plena escuridão, sem lanterna, sem nada. Pois, não podíamos chamar atenção nem acordar minha família.

  Nosso segredo ficou guardado a sete chaves e esperávamos que quando a suspeita de endurecimento do regime passasse, nós fôssemos triunfantes contar a nossa façanha aos nossos dirigentes mostrando-lhes que havíamos sido capazes de preservar todo o material! Quando finalmente esse dia chegou, voltamos ao quintal e depois de várias tentativas nada encontramos. “Você tem certeza de que foi exatamente aqui?”, perguntávamos uns aos outros. Um achava que era mais ali, outro achava que era mais pra lá e o resultado foi que minha mãe, contrariadíssima, quis saber qual era a razão de estarmos fazendo buracos em seu quintal sem plantarmos nada. Não tivemos coragem de contar a verdade e o resultado foi que perdemos tudo de novo!

MARISA BITTAR

Professora da UFSCar      

 

 

3 comentários:

Sergio Leal disse...

Que bela Historia essa da Marisa!

O caminho se faz ao caminhar disse...

Pois é, querida Marisa... Eu me identifiquei com o seu drama, com o seu relato, como verá no comentário que postei na crônica do Camarada Fausto, "Queimem os documentos".
Embora o mais prudente fosse a incineração, muitas vezes a urgência ou a discrição determinava outro destino, sendo o menos arriscado (para executar) o enterro do material, geralmente em área discreta e que não despertasse suspeita.
Ainda que meu pai não fosse organizado em qualquer partido socialista, o fato de ser um leitor que levava consigo livros desde seus tempos de universitário no Cairo (Egito), acrescido dos livros marxistas incluídos pelo(a)s irmão(ã)s mais velho(a)s que estudavam em universidades bolivianas, as várias incursões noturnas de soldados eram motivos de muita adrenalina e desespero... E a nós, os mais jovens da família, é que cabia a tarefa dolorosa de enterrar livros emblemáticos, que sabíamos que nos fariam falta mais adiante...

Unknown disse...

Sensacional!!!