terça-feira, 1 de junho de 2021

 

OLEG TSUKÂNOV, UM RUSSO EM CAMPO GRANDE

Marisa Bittar

(Esta crônica será publicado no livro Histórias que ninguém vai contar)



  O PCB de Mato Grosso do Sul ainda não havia chegado a uma compreensão exata do que a Perestroika - programa de reformas de Gorbatchev - significava e eis que, em 1989, caiu o muro de Berlim. O ritmo dos acontecimentos foi tão surpreendente que, no dia 26 de dezembro de 1991, a bandeira da União Soviética foi hasteada pela última vez no Kremlin colocando fim à experiência socialista de 74 anos iniciada com a Revolução de 1917.

  Com o inesperado desfecho, soubemos que o Instituto de Ciências Sociais de Moscou, onde muitos camaradas haviam morado e estudado, tinha sido fechado e seus professores demitidos. Imediatamente, pensamos nos dois mais queridos pelos brasileiros, Oleg e Kapustin. A situação deles era tão difícil que, em 1992, Oleg sinalizou que estava disposto a vir para o Brasil, país que amava e, para isso, esperava ajuda do PCB.

  Naquele ano, como professores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Fausto Matto Grosso, Amarilio Ferreira Jr. e eu, com a colaboração do Professor Francisco Cock Fontanella, empreendemos intensas tratativas que envolveram o interesse da UFMS, representada pelo Reitor Fauze Scaff Gattass, e o MEC, determinado a receber acadêmicos russos nas universidades brasileiras.

  Foi assim que no primeiro semestre de 1993, desembarcaram em Campo Grande, Oleg Petrovitch Tsukânov e Ludmilla Tsukânova, que ali mesmo na chegada, começou a colocar em prática as primeiras frases em português que certamente vinha aprendendo com o professor perfeccionista que a acompanhava e que, a cada palavra, a corrigia enquanto eu dizia que seu português estava ótimo! Também nos primeiros instantes em solo sul-mato-grossense, Oleg nos reservou uma enorme surpresa: com seu habitual sorriso maroto, acompanhado da palavra “genial!”, uma de suas favoritas, tirou uma pasta azul-claro da sacola e nos perguntou: “Adivinhem o que tem aqui?! Foi a última coisa que consegui no Instituto!”. Ao desamarrar as fitas da pasta, deparei-me, emocionada, com os certificados do Curso que Amarilio e eu havíamos feito lá, nos anos de 1980, com os nossos nomes verdadeiros! Eu jamais havia imaginado que eles existissem e muito menos que algum dia teríamos a chance de manter a prova de uma experiência tão incomum.

  Dotado de rara inteligência, doutor em Ciências Econômicas pelo Instituto de Relações Internacionais de Moscou, Oleg falava e escrevia em cinco línguas dentre as quais o português. Adorava lembrar que seu nascimento havia sido em um 9 de maio, dia que ficou na história como o do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Ele nos contava que, tendo nascido em 1938, desde menino tinha orgulho de seu aniversário coincidir com as celebrações da libertação do mundo do nazi-fascismo.

  Chegando à UFMS, Oleg foi professor em vários cursos, realizou palestras em muitas outras universidades brasileiras e, devido à sua cultura e formação acadêmica, contrastava com o nosso provincianismo, que frequentemente o exasperava, sem chegar, no entanto, a diminuir sua paixão pelo que fazia, principalmente a dedicação aos alunos. Oleg imediatamente se tornou uma sensação nos meios acadêmicos e culturais, sempre concedendo entrevistas, escrevendo e publicando.

  Assim foram transcorrendo os seus anos em Campo Grande, cidade que ele dizia ser a sua preferida, gosto que não coincidia com o de Ludmilla, que sentia muita falta da vida cultural que tinha em Moscou. Sempre empenhados na permanência do casal entre nós, aquele grupo que havia conseguido a sua vinda em 1993, obteve novas renovações de seu contrato com a UFMS tanto com o Reitor Fauze Gattass quando com seu sucessor, o Reitor Chacha. Quando essas sucessivas estratégias se esgotaram, ele se tornou professor da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB onde integrou o Mestrado em Desenvolvimento Local.

  Mas havia também a vida privada! E para preocupação constante de Ludmilla, Oleg logo descobriu as delícias de nossa carne bovina, o que também gerava apreensão de sua cardiologista, Dra. Maria Augusta Rahe Pereira, de quem ele vivia se escondendo para poder comer e beber o que gostava! Estrategicamente, ele providenciou um esconderijo em um barzinho na esquina da Rua 15 de Novembro onde, de vez em quando, ia tomar uma cervejinha. Como havia um semáforo ali, ele se protegia atrás de uma parede pois, como nos dizia rindo, “e se algum daqueles carros que parassem no sinal fosse o da Maria Augusta?!”

  Sua formação política soviética ficou cristalinamente comprovada quando chegou o momento de renovar contrato com o proprietário do apartamento em que ele e Ludmilla moravam. O desentendimento foi hilário! Isso porque ele tinha assistido a um pronunciamento do então Presidente da República Itamar Franco no qual afirmava que o preço dos aluguéis não deveria subir. De posse dessa informação, ele contradisse imediatamente o padre da Igreja Ortodoxa, dono da moradia, e de quem ele e Ludmilla haviam ficado amigos. De nada adiantou eu dizer que aquilo era só um pronunciamento, que no Brasil era assim mesmo, e que quase ninguém acreditava na palavra do Presidente. Ele ficava mais nervoso ainda e, vermelho de raiva, repetia alterado: “O Presidente disse!”. Resultado: o padre se manteve irredutível no preço e eles tiveram de se mudar da Rua Sebastião Lima, interrompendo o contato diário entre nós, pois Amarilio e eu morávamos a poucas quadras deles no bairro Monte Líbano.

  No final da década de 1990, apesar de todos os nossos esforços, seu contrato com a UCDB não pode ser renovado e, então, contratado pela Universidade Católica de Brasília, ele e Ludmilla deixaram Campo Grande, para lamento dos seus amigos. No começo de 2003, logo após regressar de uma viagem a Moscou, Oleg sofreu um ataque cardíaco que tirou sua vida. Se destino existe, ele voltou de sua pátria para morrer no Brasil.

  Dentre os seus vários escritos no Brasil, deixou uma brochura publicada pela UFMS “Novos desafios para a estratégia social”. No exemplar que deu a mim e ao Amarilio, ele escreveu uma dedicatória que me lembra puros sentimentos de adolescência: “Aos meus melhores amigos, uma pequena lembrança”. Oleg Tsukânov. 4.10.1996.


 

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