sábado, 29 de agosto de 1998

‘BAÚ DAS IDÉIAS’: PAIXÃO E TRAJETÓRIA MILITANTE DE FAUSTO MATTO GROSSO

A História da humanidade não é feita apenas de efemérides, atos grandiosos ou personalidades marcantes e excepcionais. Muito ao contrário, a construção histórica é um ato coletivo, solidário e faz-se através de gestos simples e cotidianos, com generosidade e desprendimento. Nas ações mais corriqueiras de uma coletividade encontra-se a essência das grandes transformações. A dinâmica do processo histórico adquire, então, uma ampla e significativa dimensão pela trama complexa e articulada de ações individuais e coletivas que se inscrevem na vida e no tempo. À cada geração cabe a tarefa de recuperação e preservação da memória dos fatos, das ações, dos gestos e das idéias, seja no âmbito individual ou coletivo.
Por isso, faz-se necessário registrar fatos, idéias, impressões e invenções humanas, das mais simples até as grandes transformações provocadas na sociedade, buscando apreender o que existiu de mais significativo em cada fase da História, através da preservação de vestígios, evidências e provas das construções mais primitivas aos processos tecnológicos mais modernos e revolucionários, passando pela compreensão do pensamento e das construções ideológicas que caracterizaram cada etapa histórica.
Nessa perspectiva, merece especial atenção a preservação da memória histórica de Mato Grosso do Sul. Apesar de ser um Estado criado em tempo recente, sua construção histórica transcende a sua idade cronológica oficial. Nesse sentido, o resgate da memória e da história dessa região, através de registros escritos ou orais, é tarefa obrigatória para quem tem compromisso com a transformação de sua comunidade. Infelizmente, muito se perdeu, e ainda se perderá, pela falta de cuidado em preservar esses registros históricos. Por isso, é gratificante quando vem a público uma coletânea como a de Francisco Fausto Matto Grosso Pereira, registrando em artigos, através do olhar aguçado, crítico e sensível de professor e militante político, as transformações do mundo contemporâneo e suas implicações na vida cotidiana de brasileiros e de sul-mato-grossenses.
Nascido em 1949, filho de um representante comercial, Fausto Matto Grosso viveu sua infância em Aquidauana, vindo depois a residir em Campo Grande. Estudou Engenharia Civil na Universidade Federal do Paraná, formando-se em 1971. Enquanto universitário e estudante de Engenharia participou ativamente do movimento estudantil, nos embates contra a ditadura militar, ingressando na Ação Popular. Ao retornar à Campo Grande, ingressou em 1972 na Universidade Estadual de Mato Grosso como professor, ao mesmo tempo que passava a fazer parte, na clandestinidade, dos quadros do PCB. Sua experiência como professor universitário foi interrompida quando em fins de 1974 foi demitido, vítimado pela intolerância e pela obscuridade dos anos de chumbo no Brasil. No âmbito interno da Universidade, a sua demissão foi decorrência direta de sua ativa participação política e acadêmica. No plano político nacional, o afastamento arbitrário do seu ambiente de trabalho coincidiu com a violenta repressão, em especial, dirigida aos militantes do PCB e com as repercussões da primeira grande derrota eleitoral imposta pela oposição ao regime de exceção então vigente (com os cargos conquistados pelo MDB em diversos Estados da União).
Somente em dezembro de 1987, após longo afastamento compulsório, em virtude dos novos ventos da abertura democrática e da anistia, conseguiu retornar às atividades acadêmicas, na então Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. No período em que se distanciou involuntariamente das atividades docentes, dedicou-se à sua atividade profissional de engenheiro e à militância partidária no PCB, abrigado sob o surrealista guarda-chuva político do PMDB. Por esta sigla oposicionista foi eleito vereador de Campo Grande (1982-1986), tornando-se um dos mais atuantes e combativos parlamentares de sua geração, e obtendo, também, a condição de primeiro suplente de deputado estadual nas eleições seguintes. Além do mais, foi por duas vezes secretário da Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Campo Grande. E, mais recentemente, desempenhou as funções de Pró-reitor de Extensão e Assuntos Estudantis da UFMS.
Como observador aguçado de seu tempo, e sem jamais abrir mão de suas convicções e militância partidária, produziu para a imprensa local uma série de textos, contribuindo de forma contundente e marcante para o debate sobre assuntos de interesse da coletividade. Faz parte desta coletânea (subdividida em assuntos e sem a preocupação de seguir uma seqüência cronológica), textos curtos, claros e objetivos, que contribuem para a reflexão de assuntos contemporâneos, revelando nas entrelinhas um pouco de sua personalidade, de seu caráter e da sua vida despojada em defesa da sua causa e das idéias que abraçou, definida em suas próprias palavras: “sonho com um País onde todos comem, onde todos moram, onde todos vivem e não apenas sobrevivem”.
Nos primeiros textos, produzidos para revelar um ponto de vista ideológico, procurou compreender as mudanças que então ocorriam com a crise do socialismo e dos partidos comunistas no Leste Europeu. Desse modo, sem negar ou minimizar o papel do PCB, defendeu a sua opção pelo PPS, enquanto parte de um processo complexo de modernização, de continuidade e ruptura, e de superação dialética. Definiu ainda a sua opção política no contexto de reordenamento e transformação da esquerda tradicional e representada pelos PCs, a partir de uma concepção pluralista. Rejeitando o sectarismo e o reducionismo que vitimou uma parcela importante e histórica das esquerdas no Brasil, Fausto Matto Grosso defendeu, e continua defendendo, a utopia do século XXI, que é: “provar que o socialismo pode conviver com a democracia, que o capitalismo não representa o ‘fim da história’, pois, o projeto humano é mais generoso”.
Sobre a Universidade Pública, Fausto contribuiu para ampliar uma importante e oportuna discussão nacional, a partir de sua realidade, a UFMS, levantando os problemas cruciais enfrentados pela comunidade universitária, como o seu sucateamento, os baixos salários de professores e servidores administrativos, os enfrentamentos sindicais, as greves, e, também, as suas propostas enquanto Pró-reitor de Extensão e Assuntos Estudantis. Combateu as ações do Governo Federal, desde o período de Collor, que iniciou o processo de transformação da Universidade pública brasileira em “um reino de mediocridade e da enganação”, fazendo uma sincera e contundente defesa da última greve dos docentes das IFES como “um grito de resistência da Universidade brasileira contra a sua humilhação, destruição e extinção”, imposta pela ação do “professor FHC”.
Seu olhar crítico e acurado não deixou de lado as questões da política estadual e do desenvolvimento sócio-econômico regional, defendendo a esquerda como alternativa política viável para o Estado de Mato Grosso do Sul, pelo esgotamento da gangorra política tradicional, aliás, assunto em aberto nessas eleições de 1998. Apresentou também um belo conjunto de observações sobre a sua viagem à Cuba, cunhadas pelo calor humano dos cubanos, convictos dos princípios e do valor da Revolução, mas cientes das imensas dificuldades e contradições vividas pelo enclave socialista na América.
Enfim, este é um livro contemporâneo, instigante pelos seus assuntos, que faz pensar no papel do cidadão na sociedade, seja para compreender o esforço contraditório da manutenção de uma ordem falida na História, seja para colaborar para a sua transformação inexorável, que é, sem dúvida, a opção corajosa e coerente de Fausto Matto Grosso. Fausto não se satisfaz em ser apenas um mero observador do seu tempo, impondo-se como protagonista da Histório. Ele mesmo afirmou, ao ser indagado sobre o estigma de ser comunista: “Alguns consideram até xingamento. Entretanto, é uma das coisas das quais me orgulho. Aos preconceitos respondo com minha prática de vida, como gente, como profissional, como político, como professor”. Este testemunho já é o bastante para fazer de Fausto um militante singular, que tem dedicado seu trabalho e seu pensamento, traduzidos em ações políticas conseqüêntes, num projeto de vida que transcende suas aspirações como homem comum, professor, pai, companheiro, amigo, para concretizar um sonho que não se sonha só: o de construir um mundo mais justo, mais humano e socialista.

Campo Grande, nos altos do Santa Fé
Inverno de 1998.

VALMIR BATISTA CORRÊA

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