UMA PRISÃO PROVIDENCIAL
Marisa Bittar
(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)
Começavam os primeiros dias de maio. O ano era 1981.
O Partido havia feito uma manifestação no 1º de Maio e planejava uma ação-surpresa tendo em vista que políticos da ARENA estavam chegando a Campo Grande para lançar seu sucedâneo, o Partido Democrático Social (PDS). A principal figura da comitiva governista pró-ditadura militar era Paulo Salim Maluf.
O esquema era o
seguinte: dois grupos de militantes se encarregariam de pichar muros centrais
da capital com dois slogans “Cuidado com sua carteira, Maluf vem aí” e “PSD= O
Povo Deve Sofrer”. Eu compunha uma das equipes coordenadas pelo camarada Mario
Sérgio Lorenzetto, que seguia à risca as instruções de segurança recebidas de
nossos dirigentes. Na madrugada fria, após cumprirmos nossa tarefa, reunimo-nos
na praça do Rádio Clube, tal como previamente combinado, para avaliarmos a
operação e nos dispersarmos. Tudo havia sido um sucesso, nenhuma pista
deixáramos. Mário Sérgio, então, nos mandou a todos para casa dormir.
Contudo, assim que ele
se afastou, restaram da minha equipe Mário Albernaz, Amarilio Ferreira Jr. e eu
mesma. Estávamos tão perto dos muros do Jardim dos Estados, ainda tínhamos
nossas tintas e muita energia! Foi quando um deles teve a ideia: “que tal
picharmos mais uns dois muros?” Entusiasmados, lá fomos nós três. Mal começamos
a escrever “PDS”, dois fortes faróis se acenderam nas nossas caras. Ao mesmo
tempo, dois policiais desceram da viatura e gritaram: “Mãos pra cima!” Imediatamente
nos ordenaram que abríssemos o porta-malas do Fiat que Amarilio dirigia e lá
encontraram os panfletos restantes do Primeiro de Maio. Então, disseram apenas
“pegamos”, e nos enfiaram dentro do camburão.
Chegando à sede da
Polícia Federal nos mandaram descer e entregaram-nos às autoridades a quem eles
julgavam competentes para o caso. Estas, por sua vez, fizeram nossas fotos de
frente e de perfil, e começaram a nos interrogar individualmente. Na minha vez
eu só respondi que estava fazendo pichação por minha conta mesmo, que não
pertencia a nenhuma organização. “E o que uma menina como você está fazendo com
esses dois nessa madrugada tão fria, arriscando a sua vida?”. Eu não respondi
nada. Só pensava que estava frita, pois havia desobedecido as ordens do Mário
Sérgio colocando o Partido em risco e, além disso, mortificada comigo mesma, eu
me cobrava “Logo eu que ajudo a manter os documentos do Partido e sou
considerada disciplinada? Como vou justificar isso?”. Fomos colocados em celas
separadas, escuras, e eu não tinha ideia do que nos iria acontecer, mas comecei
a pensar também que quando o dia amanhecesse minha mãe não me encontraria na
minha cama! Arrependida, eu pensava: “Por que não fizemos como Mário Sérgio
mandou?!”
No dia seguinte nos
colocaram em uma viatura e nos transferiram para a delegacia do Bairro
Cruzeiro. Lá, fomos destinados a uma cela comum, muito suja, na qual ficamos os
três juntos pela primeira vez desde a nossa detenção. Como havia outros presos,
nós nos comunicamos minimamente com olhares e sinais confirmando uns aos outros
que nada havíamos falado sobre o Partidão. No fim daquele dia, graças à ação
dos advogados do PCB, dentre os quais Marcelo Barbosa Martins e Carmelino
Rezende, fomos notificados de que iríamos para a Delegacia Central da cidade e
de lá, após procedimentos que deveriam ser cumpridos, provavelmente seríamos
liberados. Foi o que realmente aconteceu após perguntas, fotografias,
fichamentos etc, e os policiais, satisfeitos, repetindo que tinham desbaratado
a operação contrária ao governo, a mesma que tinha feito a manifestação
“subversiva” do Primeiro de Maio. Quanto a nós, embora aliviados, estávamos
sem-graça para encarar nossos dirigentes que estavam ali para acompanhar o
desfecho da ação. Sabíamos que depois teríamos de lhes prestar contas de nosso
ato indisciplinado.
Terminado o ritual
policial, fomos liberados. Amarilio e eu fomos acompanhados por uma pequena
caravana até minha casa na Rua Padre João Crippa, onde avistei um amontoado de
gente na calçada aguardando a nossa chegada. Soubemos então que a notícia de
nossa prisão havia corrido de boca em boca desde que um boletim fora expedido
da Delegacia do Bairro Cruzeiro. Dentre minha mãe e irmãos, uma porção de
amigos comuns tanto do PCB quanto do PT, muitos dos quais ainda hoje fazem
parte do meu precioso rol de amizades construído durante a juventude. Do PT
havia também aqueles cuja predileção era criticar o PCB com os piores
qualificativos que, para nós, jovens militantes, eram verdadeira afronta e
inaceitável ofensa. Segundo o refrão que repetiam a torto e a direito,
revolucionários eram só eles do PT, o “único partido da classe trabalhadora”,
“o primeiro construído pela classe operária brasileira”. Ao PCB que, fundado em
1922, era de fato o primeiro e mais antigo partido da classe operária
brasileira cabia sempre os rótulos de “partido aliado da burguesia”,
“conciliador”, “reformista”. E a minha casa era locus de muitas dessas
discussões acaloradas porque uma parte de meus irmãos era do PCB, e a outra, do
PT; cada uma delas arregimentando um pequeno exército. Por isso, ao ser
euforicamente recebida por essa comitiva, olhei altiva para os “verdadeiros
revolucionários” perguntando-lhes: “E então, quem foi pra cadeia?!”.
Dias depois, tivemos
de responder à direção do Partidão pelo nosso ato de indisciplina. Por um lado,
aceitamos conformados as severas e justas críticas que recebemos. Por outro, no
fundo do nosso íntimo, sentíamo-nos vingados das injúrias políticas que outros
grupos de esquerda em Campo Grande viviam nos dirigindo. Por isso, apesar das
graves consequências, transformamos o nosso erro em um triunfo para nós, jovens
do PCB, uma prisão providencial!
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