quinta-feira, 22 de julho de 2021

 UMA PRISÃO PROVIDENCIAL

Marisa Bittar  

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)


        

  Começavam os primeiros dias de maio. O ano era 1981.

O Partido havia feito uma manifestação no 1º de Maio e planejava uma ação-surpresa tendo em vista que políticos da ARENA estavam chegando a Campo Grande para lançar seu sucedâneo, o Partido Democrático Social (PDS). A principal figura da comitiva governista pró-ditadura militar era Paulo Salim Maluf.

  O esquema era o seguinte: dois grupos de militantes se encarregariam de pichar muros centrais da capital com dois slogans “Cuidado com sua carteira, Maluf vem aí” e “PSD= O Povo Deve Sofrer”. Eu compunha uma das equipes coordenadas pelo camarada Mario Sérgio Lorenzetto, que seguia à risca as instruções de segurança recebidas de nossos dirigentes. Na madrugada fria, após cumprirmos nossa tarefa, reunimo-nos na praça do Rádio Clube, tal como previamente combinado, para avaliarmos a operação e nos dispersarmos. Tudo havia sido um sucesso, nenhuma pista deixáramos. Mário Sérgio, então, nos mandou a todos para casa dormir.

  Contudo, assim que ele se afastou, restaram da minha equipe Mário Albernaz, Amarilio Ferreira Jr. e eu mesma. Estávamos tão perto dos muros do Jardim dos Estados, ainda tínhamos nossas tintas e muita energia! Foi quando um deles teve a ideia: “que tal picharmos mais uns dois muros?” Entusiasmados, lá fomos nós três. Mal começamos a escrever “PDS”, dois fortes faróis se acenderam nas nossas caras. Ao mesmo tempo, dois policiais desceram da viatura e gritaram: “Mãos pra cima!” Imediatamente nos ordenaram que abríssemos o porta-malas do Fiat que Amarilio dirigia e lá encontraram os panfletos restantes do Primeiro de Maio. Então, disseram apenas “pegamos”, e nos enfiaram dentro do camburão.

  Chegando à sede da Polícia Federal nos mandaram descer e entregaram-nos às autoridades a quem eles julgavam competentes para o caso. Estas, por sua vez, fizeram nossas fotos de frente e de perfil, e começaram a nos interrogar individualmente. Na minha vez eu só respondi que estava fazendo pichação por minha conta mesmo, que não pertencia a nenhuma organização. “E o que uma menina como você está fazendo com esses dois nessa madrugada tão fria, arriscando a sua vida?”. Eu não respondi nada. Só pensava que estava frita, pois havia desobedecido as ordens do Mário Sérgio colocando o Partido em risco e, além disso, mortificada comigo mesma, eu me cobrava “Logo eu que ajudo a manter os documentos do Partido e sou considerada disciplinada? Como vou justificar isso?”. Fomos colocados em celas separadas, escuras, e eu não tinha ideia do que nos iria acontecer, mas comecei a pensar também que quando o dia amanhecesse minha mãe não me encontraria na minha cama! Arrependida, eu pensava: “Por que não fizemos como Mário Sérgio mandou?!”

  No dia seguinte nos colocaram em uma viatura e nos transferiram para a delegacia do Bairro Cruzeiro. Lá, fomos destinados a uma cela comum, muito suja, na qual ficamos os três juntos pela primeira vez desde a nossa detenção. Como havia outros presos, nós nos comunicamos minimamente com olhares e sinais confirmando uns aos outros que nada havíamos falado sobre o Partidão. No fim daquele dia, graças à ação dos advogados do PCB, dentre os quais Marcelo Barbosa Martins e Carmelino Rezende, fomos notificados de que iríamos para a Delegacia Central da cidade e de lá, após procedimentos que deveriam ser cumpridos, provavelmente seríamos liberados. Foi o que realmente aconteceu após perguntas, fotografias, fichamentos etc, e os policiais, satisfeitos, repetindo que tinham desbaratado a operação contrária ao governo, a mesma que tinha feito a manifestação “subversiva” do Primeiro de Maio. Quanto a nós, embora aliviados, estávamos sem-graça para encarar nossos dirigentes que estavam ali para acompanhar o desfecho da ação. Sabíamos que depois teríamos de lhes prestar contas de nosso ato indisciplinado.

  Terminado o ritual policial, fomos liberados. Amarilio e eu fomos acompanhados por uma pequena caravana até minha casa na Rua Padre João Crippa, onde avistei um amontoado de gente na calçada aguardando a nossa chegada. Soubemos então que a notícia de nossa prisão havia corrido de boca em boca desde que um boletim fora expedido da Delegacia do Bairro Cruzeiro. Dentre minha mãe e irmãos, uma porção de amigos comuns tanto do PCB quanto do PT, muitos dos quais ainda hoje fazem parte do meu precioso rol de amizades construído durante a juventude. Do PT havia também aqueles cuja predileção era criticar o PCB com os piores qualificativos que, para nós, jovens militantes, eram verdadeira afronta e inaceitável ofensa. Segundo o refrão que repetiam a torto e a direito, revolucionários eram só eles do PT, o “único partido da classe trabalhadora”, “o primeiro construído pela classe operária brasileira”. Ao PCB que, fundado em 1922, era de fato o primeiro e mais antigo partido da classe operária brasileira cabia sempre os rótulos de “partido aliado da burguesia”, “conciliador”, “reformista”. E a minha casa era locus de muitas dessas discussões acaloradas porque uma parte de meus irmãos era do PCB, e a outra, do PT; cada uma delas arregimentando um pequeno exército. Por isso, ao ser euforicamente recebida por essa comitiva, olhei altiva para os “verdadeiros revolucionários” perguntando-lhes: “E então, quem foi pra cadeia?!”.

  Dias depois, tivemos de responder à direção do Partidão pelo nosso ato de indisciplina. Por um lado, aceitamos conformados as severas e justas críticas que recebemos. Por outro, no fundo do nosso íntimo, sentíamo-nos vingados das injúrias políticas que outros grupos de esquerda em Campo Grande viviam nos dirigindo. Por isso, apesar das graves consequências, transformamos o nosso erro em um triunfo para nós, jovens do PCB, uma prisão providencial!

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