terça-feira, 27 de julho de 2021

 O INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE MOSCOU

                                                Marisa Bittar

(Esta crônica será publicada no livro Histórias que Ninguém Iria Contar)



 

   O Instituto de Ciências Sociais de Moscou, anexo ao Partido Comunista da União Soviética era a escola que recebia camaradas de todo o mundo para cursos de formação. Seu imponente prédio, situado na esquina da Leningradskii Prospect, 49 (Avenida Leningrado) era composto por salas de aula, biblioteca, espaços comuns de convivência, um belo anfiteatro, restaurante, ginásio de esportes, além de uma Clínica e outro prédio contíguo onde ficavam as moradias. Em missão do PCB-MS para me aprimorar no trabalho de educação política, ali cheguei em 1981, me deparando com um mosaico cultural incrivelmente diverso composto por países das mais diferentes regiões do planeta.

Todas as turmas passavam primeiro pela dasha, isto é, casa de campo, onde realizavam exames médicos, familiarizavam-se com a vida que iriam ter e começavam a aprender o russo. Em uma das aulas iniciais, o professor nos apresentou o primeiro verbo que deveríamos conjugar: o verbo trabalhar. Demonstrando expressão de surpresa pensei: o primeiro verbo não seria o “ser”?. Adivinhando meus pensamentos, o professor proferiu a bombástica frase: “No socialismo ninguém vive sem trabalhar!”

  Da dasha, fomos para o Instituto. Ele era organizado por cátedras e cada uma delas composta por doutores de Estado, cuja distinção era o domínio em três línguas estrangeiras. Nessas cátedras, os professores se organizavam pelos idiomas e turmas nas quais lecionavam; e os estudantes constituíam-se por países. O currículo era composto por História do Partido Comunista da URSS e do Movimento Operário Internacional; Filosofia; Economia Política; Teoria Política, além das aulas de russo, mas variava de acordo com o tempo que cada coletivo permaneceria na escola. A cada disciplina era destinado um dia específico da semana, e a aula durava a manhã toda. O professor expunha o assunto, esclarecia dúvidas e, depois, determinava a nossa tarefa. Portanto, tínhamos muitas horas de aula e outras tantas de estudos individuais que deveriam ser apresentados na aula seguinte de forma organizada, isto é, com base em anotações e sínteses das leituras recomendadas.

  Cada turma tinha professores que falavam a sua língua. Assim, a maior parte das nossas aulas era ministrada por professores que falavam português. Aqueles que não falavam eram acompanhados por tradutores (pirivôtchi) que haviam aprendido o português de Portugal. Por isso, já nas primeiras aulas, nós brasileiros, de forma bem-humorada, tratávamos de lhes comunicar que, a partir dali, nós os ensinaríamos o verdadeiro português!

  Nossa fama era a de sermos os mais brincalhões e comunicativos da escola, nem os italianos ganhavam de nós. Mas exibíamos também traços negativos de nossa cultura. Isso ficava claro, por exemplo, quando os professores nos cobravam a tarefa e recebiam de alguns a seguinte justificativa: “Professor, eu não tive condições de ler essa bibliografia porque precisei fazer exame médico justamente nesse dia!” A esperança de que essa desculpa fosse indiscutivelmente aceita, residia no fato de que todos no Instituto sabiam que ninguém lá dentro mandava mais do que as médicas e nenhuma autoridade era mais temida do que a  Doutora Iulia! Todos, indistintamente, entre alunos e professores, já tinham passado pelo menos uma vez pela experiência de estarem despreocupadamente no hall de convivência quando, de repente, eis que surgia a linda médica, que, ao passar por determinada pessoa que estava em falta com ela, apenas lhe advertia em tom doce: “Amanhã, obrigatoriamente, Clínica!” O tom que ela punha na palavra “obrigatoriamente” não deixava dúvidas: você tinha de ir mesmo! Todavia, essa “culpa” que espertamente se esperava atribuir à Doutora Iulia pela tarefa não realizada, quando apresentada na aula do professor Kapustin, que falava português e conhecia pessoalmente a nossa cultura, recebia severa reprovação que me deixava envergonhada: “Kapustin conhece muito bem os brasileiros!”

  Diferentes atividades aconteciam no Instituto. Além de nossas aulas e tarefas de estudo, cada coletivo programava encontros bilaterais de seu interesse, o que enriquecia nossa experiência política e cultural, além da oportunidade de novas amizades. Às segundas-feiras de manhã, em vez das aulas, todos os coletivos se reuniam no lindo anfiteatro para uma conferência, festividade cívica ou apresentação cultural. As de música e dança eram as nossas preferidas. Antes de qualquer dessas atividades, todos cantavam a Internacional, de pé, cada coletivo em sua língua.

  Duas viagens de estudo complementavam o currículo: uma delas, prêmio para todos, era a belíssima Leningrado onde ficamos sem fôlego ao entrarmos no Palácio de Inverno (Hermitage). Ainda bem que Lênin advertiu os revolucionários quando lá entraram para a tomada do poder: “Não destruam nada, temos de preservar tudo isso para as próximas gerações, é patrimônio cultural do nosso povo”. A segunda viagem se destinava a uma das 15 Repúblicas soviéticas. À minha turma, coube a Armênia, um choque de realidade que nos deu a lição de como era difícil edificar o socialismo com a pobreza herdada do regime anterior.

  Para completar, havia os sábados de trabalho. Limpar ruas; empacotar medicamentos; ajudar alguma fábrica a cumprir suas metas de produção, enfim, esse trabalho era obrigatório para todos e encarado pelo Partido Comunista da União Soviética como uma “grande iniciativa” desde o início da Revolução. Afinal, “no socialismo, ninguém vive sem trabalhar”.

  Num frio alvorecer de março, em 1982, chegou a hora de voltar para casa. Sob rígidas normas de segurança, embarcaríamos no aeroporto de Moscou. Com o camarada Mário César Ferreira, o Cecéu, olhei para trás a fim de fotografar o Instituto com os olhos. Jamais passaria pela minha cabeça que em menos de uma década a União Soviética se desintegraria e que o nosso amado Instituto se tornaria uma Faculdade de Finanças, na qual, juntamente com Amarilio Ferreira Jr. voltamos em 2012. Na mesma pracinha onde havíamos chegado em 1981, agradecemos ao PCB por ter proporcionado a nós e a tantos outros camaradas de Mato Grosso do Sul uma experiência inimaginável que tornou nossas vidas infinitamente mais ricas.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito boa e esclarecedora reportagem.