sábado, 26 de dezembro de 2020

 NÃO ERAM DO RAMO 

(Este artigo será publicado no livro "Histórias que ninguém vai contar")



  Construir e “dar assistência” ao Partido no interior sempre foi um trabalho difícil e desafiador, principalmente nos velhos tempos. Tinha-se que vencer longas distâncias, muitas vezes de ônibus, hospedar na casa de companheiros, não raro, usando dinheiro do próprio bolso. Mas era também prazeroso e deixava boas lembranças e muitas amizades.

  Certa vez fui a Corumbá, tentar reorganizar antigos militantes. Tinha o Adolfo Cunha, poaeiro, o marceneiro Guinemer Gomes da Silva, vulgo Juquinha, o Tutu Pedrosa, ex-deputado do PCB na constituinte de 1947. Era necessário aproximá-los da nova militância Celso Philbois, Domingos e Wilma Sabóia, entre outros. Sempre sobrava tempo para uma visita ao ex-deputado Percy de Barros por Deus, amigo do partido.

  Levei na bagagem alguns exemplares do jornal clandestino “a Voz Operária”, um livro recente do Partido e também um livro sobre o congresso de um partido do Leste Europeu, seria a Bulgária? Ou seja, tudo material pouco inocente.

  Chegou a hora de voltar e veio-me a preocupação com a viagem de retorno. Corumbá era uma fronteira de drogas e a polícia costumava ser muito atenta. Por preocupação, na praça central da cidade, deixei o que sobrou do material, guardando apenas um exemplar de cada livro, o que poderia ser justificado como material pessoal de leitura. Em linguagem do ramo, desovei o excesso comprometedor.

  Embarquei no ponto do ônibus, com a inspeção de rotina. Estava salvo. No meio da estrada, chegou com todo o barulho de praxe, uma patrulha da Polícia Federal que no meio do chão de pedra e poeira fez que todos baixassem as bagagens. Começaram revistando a mochila de um casal de jovens estrangeiros nórdicos, provavelmente. Acharam um soco inglês, e já começaram ali mesmo o espancamento do rapaz que tentava escapar de cata cavacos.

  Na minha mochila acharam os dois livros. Folearam ambos minuciosamente, com se quisessem achar algo escondido. Nada encontraram. Mandaram-me abrir minha bolsa de couro, pediram que eu abrisse a carteira.  Lá se interessaram por uma folhinha verde que estava entre os documentos. Dei uma explicação que aquilo era uma folha de louro que minha mãe, no fim de ano, colocava na carteira dos filhos para que enriquecessem no ano seguinte. Levaram a folhinha para averiguação para os policiais mais experientes, mordiam, cheirava, molhavam com um líquido. Acabaram aceitando a minha versão.

  Sorte que não eram do ramo, não estavam interessados em questões políticas. Pude então seguir minha viagem aliviado.

Fausto Matto

(revisado em 28.12.2020)


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