sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A CIDADE UNIVERSITÁRIA

Aposentado há mais de 12 anos, nunca rompi meus vínculos sociais com da UFMS, sempre retornando, pontualmente, para eventos, palestras, debates e mesmo para visitas esporádicas ao meu antigo departamento. Recentemente tive de percorrer seus meandros, com maior amplitude e mais tempo, e fiquei tristemente surpreendido. A Universidade virou um conjunto disforme de prédios, “puxadinhos” e intermináveis estacionamentos.
Arriscando-me a eventuais impropriedades pontuais, sinto-me na obrigação de compartilhar minha aflição, até porque conheço certos aspectos singulares da sua história que ainda não foram contados.
Era inegável a beleza original do campus. O projeto dos pavilhões de ensino começou a ser desenvolvido pelo escritório de Oscar Niemeyer. Diante da grita política, o Governador recuou e passaram a atuar diretamente arquitetos locais de grande valor como Armênio Arakelian (Teatro Glauce Rocha, Restaurante e Hospital Universitário, etc.) e Avedis Balabanian (conjunto aquático). Surgiu assim um patrimônio monumental da arquitetura do Estado. A Cidade Universitária era o orgulho dos campo-grandenses, ponto obrigatório para exibir e nos gabar diante de visitantes da nossa cidade.
Nem tudo era perfeito. Os pavilhões de ensino, onde passei anos da minha vida, apresentavam alguns problemas. A cobertura em lajes pregueadas, de concreto aparente, era fechada lateralmente por tijolos furados. Para quem a projetara, a tão longa distância, deve ter ficado a sensação de uma brilhante solução para o calor campo-grandense. Através dos orifícios dos tijolos deveria circular o ar refrescante. Desconhecia o projetista a poeira vermelha dos meses de agosto, que caracterizava nossa cidade 40 anos atrás. O resultado foi que todos os orifícios foram entupidos por rolinhos de jornais. Ficamos então, com um colchão de ar quente preso em cima das nossas cabeças. Na construção dos primeiros blocos novos, durante certo tempo, consegui-se resolver tal problema respeitando a arquitetura externa.
Na construção dos longos corredores, a pressa do “milagre brasileiro” não permitia, também, muitos devaneios e preciosismos técnicos. Avisado da falta de certas “ferragens” pelo engenheiro da obra, depois professor da universidade, a construtora perguntou: “tem no projeto? Se não tem, não põe”. Como herança, passamos a consertar inutilmente e a conviver, com longevas goteiras que escorrem das lajes em incompreensíveis estalactites.
Na região central de cada bloco havia sempre uma cantina. Em frente destas, um amplo espaço de convivência social dos estudantes. Mas arquitetura tem a ver com política também. Vivíamos a ditadura. Aglomeração de estudantes não combinava com o regime. Começa aí o desastre político-arquitetônico. A Universidade começou a crescer “para dentro”, ocupando, com novas instalações, esses espaços “livres”. A universidade virou um imenso conjunto de corredores de desencontros. Em alguns locais esses corredores também começaram a ser tomados por “puxadinhos para dentro”.
Ainda sobre a política, um dos mais belos prédios da UFMS, o Restaurante Universitário, já pronto e equipado, ficou vários anos fechados, por ordem do Comando Militar da Região, que abominava esses “centros de agitação subversiva”.
Outro equipamento que marcava o campus era o famigerado Morenão, um intruso megalomaníaco no projeto da Universidade. Presente de grego, em um estado sem futebol, sempre foi um imenso problema para a Universidade a quem cabia arcar com o ônus do seu alto custeio, vindo a se tornar, posteriormente, de maneira inadequada, o local de novos “puxadinhos para dentro.”
Passaram-se os anos. A Universidade cresceu muito em instalações e prédios. Imagino que todos devem ter a sua utilidade, não se trata de questioná-los. Entretanto, uma revisita ao campus, nos mostra o grande patrimônio arquitetônico original, além de sucateado, transformado em um monstrengo estético e social.
Exemplo singular e especialmente chocante é o atentado contra a visão monumental do Teatro Glauce Rocha, obstaculizada por uma edificação singela, provavelmente muito importante, mas de locação absolutamente imprópria. Choca-nos também o imenso estacionamento no qual se transformou o campus, sem que se negociasse, com a cidade, uma solução adequada de transporte público.
Quanto às novas construções, não se percebe uma harmonia mínima entre elas e o núcleo original dos prédios. Salta aos olhos uma poluição de estilos, uma distribuição aparentemente caótica na implantação de novos blocos, a perda de áreas verdes, a existência de construções precárias. Parece que a lógica dominante, aqui também, é de que governar é construir obras, aparentemente o planejamento foi substituído pela cultura do imediatismo.
Choca também as notícias na imprensa de a Universidade fazer essa expansão, muitas vezes, através das famigeradas emendas parlamentares, como se a instituição, não fosse, ela mesma, Governo Federal e tivesse, de pires na mão, obrigada a percorrer caminhos tortuosos e nefastos em uma área onde o caminho deveria passar por processos de competência institucional.
Não tenho nenhuma intenção de culpar pessoas, dirigentes acadêmicos ou técnicos da Instituição, até por que não conheço os fatos. Exponho aqui o resultado, tristemente perceptível, de um longo processo de degradação física e estética do campus.
Junto a toda essa perplexidade, talvez por sentimentos já vencidos no tempo, o aperto no peito de ver uma Universidade fechada por cercas e dentro delas uma Reitoria ilhada por outra cerca protetora. Vivi um tempo em que a Universidade era cercada apenas pelo respeito social, onde se defendia a autonomia e onde polícia não entrava.

FAUSTO MATTO GROSSO
Engenheiro, professor aposentado da UFMS

29.08.2014

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