‘BAÚ DAS IDÉIAS’: PAIXÃO E TRAJETÓRIA MILITANTE DE FAUSTO MATTO GROSSO
A
História da humanidade não é feita apenas de efemérides, atos
grandiosos ou personalidades marcantes e excepcionais. Muito ao
contrário, a construção histórica é um ato coletivo, solidário
e faz-se através de gestos simples e cotidianos, com generosidade e
desprendimento. Nas ações mais corriqueiras de uma coletividade
encontra-se a essência das grandes transformações. A dinâmica do
processo histórico adquire, então, uma ampla e significativa
dimensão pela trama complexa e articulada de ações individuais e
coletivas que se inscrevem na vida e no tempo. À cada geração cabe
a tarefa de recuperação e preservação da memória dos fatos, das
ações, dos gestos e das idéias, seja no âmbito individual ou
coletivo.
Por
isso, faz-se necessário registrar fatos, idéias, impressões e
invenções humanas, das mais simples até as grandes transformações
provocadas na sociedade, buscando apreender o que existiu de mais
significativo em cada fase da História, através da preservação de
vestígios, evidências e provas das construções mais primitivas
aos processos tecnológicos mais modernos e revolucionários,
passando pela compreensão do pensamento e das construções
ideológicas que caracterizaram cada etapa histórica.
Nessa
perspectiva, merece especial atenção a preservação da memória
histórica de Mato Grosso do Sul. Apesar de ser um Estado criado em
tempo recente, sua construção histórica transcende a sua idade
cronológica oficial. Nesse sentido, o resgate da memória e da
história dessa região, através de registros escritos ou orais, é
tarefa obrigatória para quem tem compromisso com a transformação
de sua comunidade. Infelizmente, muito se perdeu, e ainda se perderá,
pela falta de cuidado em preservar esses registros históricos. Por
isso, é gratificante quando vem a público uma coletânea como a de
Francisco Fausto Matto Grosso Pereira, registrando em artigos,
através do olhar aguçado, crítico e sensível de professor e
militante político, as transformações do mundo contemporâneo e
suas implicações na vida cotidiana de brasileiros e de
sul-mato-grossenses.
Nascido
em 1949, filho de um representante comercial, Fausto Matto Grosso
viveu sua infância em Aquidauana, vindo depois a residir em Campo
Grande. Estudou Engenharia Civil na Universidade Federal do Paraná,
formando-se em 1971. Enquanto universitário e estudante de
Engenharia participou ativamente do movimento estudantil, nos embates
contra a ditadura militar, ingressando na Ação Popular. Ao retornar
à Campo Grande, ingressou em 1972 na Universidade Estadual de Mato
Grosso como professor, ao mesmo tempo que passava a fazer parte, na
clandestinidade, dos quadros do PCB. Sua experiência como professor
universitário foi interrompida quando em fins de 1974 foi demitido,
vítimado pela intolerância e pela obscuridade dos anos de chumbo no
Brasil. No âmbito interno da Universidade, a sua demissão foi
decorrência direta de sua ativa participação política e
acadêmica. No plano político nacional, o afastamento arbitrário do
seu ambiente de trabalho coincidiu com a violenta repressão, em
especial, dirigida aos militantes do PCB e com as repercussões da
primeira grande derrota eleitoral imposta pela oposição ao regime
de exceção então vigente (com os cargos conquistados pelo MDB em
diversos Estados da União).
Somente
em dezembro de 1987, após longo afastamento compulsório, em virtude
dos novos ventos da abertura democrática e da anistia, conseguiu
retornar às atividades acadêmicas, na então Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. No período em que se distanciou
involuntariamente das atividades docentes, dedicou-se à sua
atividade profissional de engenheiro e à militância partidária no
PCB, abrigado sob o surrealista guarda-chuva político do PMDB. Por
esta sigla oposicionista foi eleito vereador de Campo Grande
(1982-1986), tornando-se um dos mais atuantes e combativos
parlamentares de sua geração, e obtendo, também, a condição de
primeiro suplente de deputado estadual nas eleições seguintes. Além
do mais, foi por duas vezes secretário da Associação dos
Engenheiros e Arquitetos de Campo Grande. E, mais recentemente,
desempenhou as funções de Pró-reitor de Extensão e Assuntos
Estudantis da UFMS.
Como
observador aguçado de seu tempo, e sem jamais abrir mão de suas
convicções e militância partidária, produziu para a imprensa
local uma série de textos, contribuindo de forma contundente e
marcante para o debate sobre assuntos de interesse da coletividade.
Faz parte desta coletânea (subdividida em assuntos e sem a
preocupação de seguir uma seqüência cronológica), textos curtos,
claros e objetivos, que contribuem para a reflexão de assuntos
contemporâneos, revelando nas entrelinhas um pouco de sua
personalidade, de seu caráter e da sua vida despojada em defesa da
sua causa e das idéias que abraçou, definida em suas próprias
palavras: “sonho com um País onde todos comem, onde todos moram,
onde todos vivem e não apenas sobrevivem”.
Nos
primeiros textos, produzidos para revelar um ponto de vista
ideológico, procurou compreender as mudanças que então ocorriam
com a crise do socialismo e dos partidos comunistas no Leste Europeu.
Desse modo, sem negar ou minimizar o papel do PCB, defendeu a sua
opção pelo PPS, enquanto parte de um processo complexo de
modernização, de continuidade e ruptura, e de superação
dialética. Definiu ainda a sua opção política no contexto de
reordenamento e transformação da esquerda tradicional e
representada pelos PCs, a partir de uma concepção pluralista.
Rejeitando o sectarismo e o reducionismo que vitimou uma parcela
importante e histórica das esquerdas no Brasil, Fausto Matto Grosso
defendeu, e continua defendendo, a utopia do século XXI, que é:
“provar que o socialismo pode conviver com a democracia, que o
capitalismo não representa o ‘fim da história’, pois, o projeto
humano é mais generoso”.
Sobre
a Universidade Pública, Fausto contribuiu para ampliar uma
importante e oportuna discussão nacional, a partir de sua realidade,
a UFMS, levantando os problemas cruciais enfrentados pela comunidade
universitária, como o seu sucateamento, os baixos salários de
professores e servidores administrativos, os enfrentamentos
sindicais, as greves, e, também, as suas propostas enquanto
Pró-reitor de Extensão e Assuntos Estudantis. Combateu as ações
do Governo Federal, desde o período de Collor, que iniciou o
processo de transformação da Universidade pública brasileira em
“um reino de mediocridade e da enganação”, fazendo uma sincera
e contundente defesa da última greve dos docentes das IFES como “um
grito de resistência da Universidade brasileira contra a sua
humilhação, destruição e extinção”, imposta pela ação do
“professor FHC”.
Seu
olhar crítico e acurado não deixou de lado as questões da política
estadual e do desenvolvimento sócio-econômico regional, defendendo
a esquerda como alternativa política viável para o Estado de Mato
Grosso do Sul, pelo esgotamento da gangorra política tradicional,
aliás, assunto em aberto nessas eleições de 1998. Apresentou
também um belo conjunto de observações sobre a sua viagem à Cuba,
cunhadas pelo calor humano dos cubanos, convictos dos princípios e
do valor da Revolução, mas cientes das imensas dificuldades e
contradições vividas pelo enclave socialista na América.
Enfim,
este é um livro contemporâneo, instigante pelos seus assuntos, que
faz pensar no papel do cidadão na sociedade, seja para compreender o
esforço contraditório da manutenção de uma ordem falida na
História, seja para colaborar para a sua transformação inexorável,
que é, sem dúvida, a opção corajosa e coerente de Fausto Matto
Grosso. Fausto não se satisfaz em ser apenas um mero observador do
seu tempo, impondo-se como protagonista da Histório. Ele mesmo
afirmou, ao ser indagado sobre o estigma de ser comunista: “Alguns
consideram até xingamento. Entretanto, é uma das coisas das quais
me orgulho. Aos preconceitos respondo com minha prática de vida,
como gente, como profissional, como político, como professor”.
Este testemunho já é o bastante para fazer de Fausto um militante
singular, que tem dedicado seu trabalho e seu pensamento, traduzidos
em ações políticas conseqüêntes, num projeto de vida que
transcende suas aspirações como homem comum, professor, pai,
companheiro, amigo, para concretizar um sonho que não se sonha só:
o de construir um mundo mais justo, mais humano e socialista.
Campo
Grande, nos altos do Santa Fé
Inverno
de 1998.
VALMIR
BATISTA CORRÊA
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