sábado, 14 de novembro de 2020

(um livro escrito página a página)

O INCRÍVEL EXÉRCITO DE BRANCALEONE



 

Na Itália do século 11, o maltrapilho Brancaleone forma um exército de mortos de fome e parte em direção a terras a que julga ter direito. Percorrendo a Europa medieval em um pangaré, ele se depara com a peste negra, com bruxas e bárbaros.

Muitos séculos depois, no final dos anos de 1960, um grupo de irrequietos jovens universitários se encontra nas férias em Campo Grande, com as cabeças cheias de ideias. O Brasil vivia os “anos de chumbo”, o cheiro de pólvora estava no ar. Para muitos, a luta armada parecia ser o caminho para derrotar a ditadura.

Plagiando Gullar, éramos apenas 5, tínhamos sede de justiça e estávamos dispostos a lutar por ela. Os primos Alberto e Ronaldo, estudantes de Medicina, o espírita Aymoré, o engenheirando Joaquim, e este que vos fala, aquidauanense de coração e botafoguense nas horas vagas.

Tínhamos que estar preparados, afinal a convocação poderia vir a qualquer momento.

Resolvemos fazer um treino de caminhada longa. Imediatamente Aquidauana veio à mente. A cerca de 150 km de distância, em 3 dias estaríamos lá. A voz da prudência apontou que deveríamos antes, fazer um treinamento do treinamento e acabamos adotando um trecho mais curto, de cerca de 30 km para que atingíssemos a fazendinha dos avós de um dos aventureiros, na saída para Dourados.

 Em termos de marchas e acampamentos, as mochilas e as barracas ainda não estavam na moda e o jeito foi improvisar. Com nossas sacolas amarradas com cintos e correias, nos viraríamos. Não tínhamos também calçados adaptados para caminhadas, mas essa era uma questão menor. O maior problema de logística era a barraca. Conseguimos uma com um parente, daquelas de pescarias. Ela era sustentada, no centro, por um poste de aço fundido, superpesado. Todas as maneiras de carregar o poste da barraca foram tentadas. Com os cinco, com quatro, com três, com dois, por um de arrasto, um grande aprendizado.

Eu, com o encargo de cozinheiro, levei a melhor receita de carreteiro. Adicionalmente, foram providenciados suplementos alimentícios como leite em pó, chocolate e goiabada, afinal não existiam por aqui aquelas latas de feijão, como no velho oeste.

Se não me engana a memória, tínhamos também soro antiofídico. Mas o Alberto era alérgico a essa droga, de forma que a marcha só foi desinterditado pela sua mãe, após o compromisso de fazer toda a caminhada calçando botas de canos longos. Lembrava um lorde inglês caçando raposas. O resultado foi que lá pela altura do Cemitério Santo Antônio ele já estava com insuportáveis bolhas nos pés e teve que marchar direto, quase sem descanso.

Saímos pela madrugada, ainda encontrando alguns amigos, saindo das festas, a nos gozar pela estranheza da trupe.

O primeiro obstáculo a superar foi o posto da Polícia Federal. Logramos êxito após algumas justificativas mentirosas.

Caminhávamos 50 minutos e interrompíamos por 10 para descanso. Era tempo para a recuperação da diferença de distancia do Alberto. Fomos impiedosos com ele. Desprezamos o ensinamento de camaradagem do Che, de que a marcha de uma coluna deve ter a velocidade do combatente mais fraco.

Marchamos até a fome apertar nossas barrigas. Daí entrei em ação, para cozinhar nosso carreteiro. Com alguns gravetos (verdes e úmidos) fizemos o fogo, o que causou uma fumaceira infernal. De tempo em tempo eu abria a caçarola para ver se já estava pronto o carreteiro. Resultado, tivemos que jogar fora todo a comida, pelo intragável gosto de fumaça e, ainda em começo de viagem, tivemos que repartir o estoque de estratégico, o chocolate, o leite em pó e a goiabada.

Na boquinha da noite chegamos à fazendinha. Montamos a barraca perto de um alagado. Foi quando surgiu a primeira fraqueza pequeno-burguesa. Poderíamos usar a piscina ou não? A casa da fazenda, nem pensar. Acabamos amenizando nosso cansaço e calor na piscina até chegarem as estrelas.

Voltamos para a barraca, nosso segundo percalço. A barraca tinha sido tomada por uma fila de imensas formigas que inutilizaram nossos alimentos. Eram prováveis agentes da reação. Veio então segunda concessão pequeno-burguesa, acabamos aprovando, por unanimidade, que íamos utilizar a casa da fazenda. O Alberto ardia em febre, com os pés rachados e super-inflamados.

Ficamos mais um dia, refestelados na piscina e comendo manga. Até que tivemos que dar um recuo tático e chamarmos sua família. Foi a terceira derrota pequeno-burguesa. 

Voltamos para casa de caminhonete, derrotados temporariamente, mas ninguém pode dizer que não tentamos.

Fausto Matto Grosso

 

7 comentários:

Contra Covid disse...

Fantástico!!

Sergio Leal disse...

Muito boa! Final dos 1960...

Unknown disse...

Supreendeu- me, pois sempre vi você, com livro na mão.
Jamais pensaria, que fosse capaz de fritar um ovo, quanto mais um carreteiro.

Fausto Matto Grosso disse...

Tá certo, nunca fui bom nesse oficio

Unknown disse...

Gostei muito, descrição descrição perfeita daquela época de aventuras! Parabéns!

Unknown disse...

Fausto, você sempre surpreendendo. Grande aventura. Parabéns pela tentativa heróica. Abraço fraterno

Paulo Roberto Cimó Queiroz disse...

Muito boa essa história!