segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

(Um livro escrito página a página) 

O MEDO DO OUTRO

 



           A partir do AI-5, em dezembro de 1968, a ditadura assumiu o seu caráter fascista. Em um primeiro momento ocorreu o confronto e a destruição dos grupos de luta armada. A morte de Carlos Marighela em 1969 foi um episódio representativo desse período.

Com a posse de Ernesto Geisel em março de 1974, diante de grande pressão da opinião pública, o regime começou a ensaiar o seu processo de “abertura lenta, gradual e segura”. Foi exatamente nesse contexto que o PCB passou a sofrer a mais amarga repressão. Foi vítima do próprio acerto da sua política de frente democrática, que combinava a ação política clandestina com a ocupação de espaços legais, buscando isolar o regime.

Entre 1973 e 1975, um terço de seu Comitê Central foi assassinado pela repressão, e milhares de militantes foram submetidos à tortura, alguns até a morte, dentre os quais o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho. Diante desses fatos, foi decidida a retirada do Comitê Central do partido, para o exterior. Por suspeita de infiltração no seu esquema de fronteira, foi recomendado que cada dirigente deveria montar o seu próprio esquema individual de saída do País.

José Paulo Neto, dirigente do Comitê Central do PCB, havia sido Secretário de Cultura de Juiz de Fora na gestão de Itamar Franco, a quem pediu ajuda. Itamar discutindo com Senador Tancredo Neves montou o esquema de fronteira. Tancredo era amigo do proprietário do Grande Hotel de Corumbá e para lá foi levado o nosso fugitivo.

O Grande Hotel era um magnífico edifício construído por pecuaristas locais, em estilo decô, no centro da cidade.  Já havia recebido gente importante como o presidente Getúlio Vargas, bem como artistas famosos como Wanderley Cardoso e Jerry Adriani. Fizera grande sucesso nos anos 1950 e 1960.

O Zé Paulo, barbudão, sempre pitando seu cachimbo, teria que esperar alguns dias na cidade para o contato com o lado boliviano. Foram dias de muita aflição. Acordava cedo, descia para o café da manhã e sempre tinha um negão olhando para ele. Saia para dar umas caminhadas na praça e lá estava ele de novo fitando-o. Recolhia-se ao quarto. Almoço e jantar, tudo igual.  No dia seguinte, tudo se repetia da mesma forma. Foi ficando assustado, imaginando que estava sendo seguido e que a polícia estaria apenas esperando para ver qual era o esquema de fronteira que estava funcionando para a retirada dos comunistas em fuga. Seria preso, torturado, e quem sabe “desaparecido”.

Diante da aflitiva situação fez contado com Itamar Franco que mobilizou novamente Tancredo Neves. Mais um dia de aflição e o dono do hotel veio falar com ele: não precisava ficar com medo, o negão era também um fugitivo da polícia que estava escondido na cidade. Pronto acabou-se o clima de desconfiança e duelo.

 Muitos anos depois, durante uma viagem de trem que fizemos a Corumbá, o dirigente José Paulo Neto me contou como se virou e dos medos que passou. Paúra de mineiro em fuga em terras desconhecidas.

FAUSTO MATTO GROSSO

Engenheiro e professor aposentado da UFMS

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