quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

 

CERCADOS PELO EXÉRCITO

(Esta crônica será publicado no livro Histórias que ninguém vai contar)


O Centro de Educação Rural de Aquidauana (CERA) surgiu em 1974 por iniciativa de alguns agropecuaristas locais, durante o governo José Fragelli. Com essa denominação, funcionou até 2001, quando foi extinto. Durante os anos de 1994 e 1998, foi administrado pelo SENAR. Os estudantes eram alunos bolsistas em regime de internato para rapazes e semi-internato misto. Após a sua extinção, o patrimônio e o curso foi destinado à Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

  Seus alunos provinham de diversos municípios do estado e mesmo de estados vizinhos. Formavam uma espécie de comunidade à parte na cidade. Eram muitas vezes tratados como estrangeiros, que o digam aqueles mais afoitos que pretenderam arranjar namoradas na cidade. Era procurar encrenca certa. Os jovens do CERA tinham atividades culturais bastante intensa. Durante 10 anos, consecutivos produziram, realizaram e apresentavam peças teatrais orientadas pelo professor Paulo Corrêa de Oliveira, arquiteto, professor e diretor das peças. 

  Dentro da escola funcionava um núcleo partidário da juventude do Partidão, com a tolerância, a simpatia e a cumplicidade de alguns professores e diretores. Para reconhecer os jovens comunistas era fácil – todos usavam óculos, jogavam xadrez e usavam bolsas a tiracolo. A organização desses estudantes chegou a ter entre 15 e 18 membros, segundo relatado por alguns deles.

  A vida de internato era rotineira, focada nos estudos, o que propiciava bons resultados em termos escolares. Os jovens do Partidão tinham também outro interesse paralelo, a formação política, propiciadas por leituras, palestras ou por grupos de estudos. Às segundas feiras à noite tinham as reuniões partidárias realizadas abertamente debaixo de alguma árvore ou nos corredores dos blocos, à vista de todos, como um encontro normal de estudos escolares. Não sei por que, mas tinham a ideia de que realizar essa atividade de maneira clandestina seria mais perigoso. Nos fins de semana ocorriam as reuniões dos grupos de estudo, às vezes na cidade.

  Durante certo tempo fui encarregado de providenciar a remessa de livros para a insaciável sede de leitura daqueles jovens. Enviava os textos, muitas vezes através de Yonne Orro, dirigente do partido em Aquidauana. Era material introdutório ao marxismo, alguns clássicos de Marx, Engels e Lenin, e os manuais de materialismo dialético de Afanasiev, Thalheimer e Politzer e Marta Harnecker. Era o suficiente para incendiar aqueles jovens generosos com todas as certezas do mundo, inclusive a de que, com a completa eletrificação rural na URSS, seria atingido o comunismo. Só nos últimos tempos começaram a receber material de Gramsci.

Interessavam-se também pela questão agrária. Quatro Séculos de Latifúndio de Alberto Passos Guimarães e Os Sertões de Euclides da Cunha eram leituras obrigatórias. Certa vez fomos surpreendidos com a encomenda de A Função do Orgasmo, de Wilhelm Reich. Após certa indecisão nossa, acabaram sendo atendidos.

  Apesar de reclusos em internato, tinham certas regalias, que lhes permitiam participar das reuniões do partido na cidade, bem como viagens pelo movimento estudantil no Estado e eventos nacionais. A convivência no internato, o foco nos estudos e na formação política produziram uma geração de jovens bem formados e maduros politicamente. Após a conclusão dos cursos, muitos desses jovens voltaram para as suas cidades onde prestaram grande ajuda à organização do Partidão no interior do Estado.

  Um único incidente resta registrar. O trabalho político desses jovens nos enchia de orgulho e muitas vezes repercutiam fora dos limites do partido. Certa vez tivemos um problemão com a pixação de uma foice e martelo no paredão de pedra em um dos morros próximos. Seria uma resposta a uma pichação com a insígnia da organização católica conservadora Tradição, Familia e Propriedade (TFP). 

Nossos jovens continuam negando a autoria do ato até hoje. Teria sido um funcionário da escola, simples simpatizante. O glorioso Exército Brasileiro fechou a estrada de acesso á  escola, reteve o ônibus  que transportava funcionários e alunas, mandou descer todo mundo e manteve um funcionário pertencente ao PCdoB à parte durante a averiguação. A direção municipal do Partidão mandou queimar todo o material de agitação e propaganda, os exemplares do jornal A Voz da Unidade, salvo os livros, porque se temia uma batida geral na escola e alojamentos. 

Ao final, tudo restou tudo resolvido, foi apenas um pequeno incidente, nada que não pudesse ser mediado pelo diligente deputado Roberto Orro, grande amigo do partido. Quanto à TFP não se sabe de qualquer providência.

Fausto Matto Grosso

 

(Esta crônica foi escrita com a ajuda memória dos ex-diretor do CERA Paulo Esselin, do professor Carlos Machado e e dos ex-alunos Hélio Sampaio e Norton Hayd Rego).

 Ajustado em 17.02.2021 por sugestão do Professor Tito Carlos Machado e do engenheiro Pedro Celestino, Presidente do Clube de Engenharia do RJ)).
          Ajustado em 02,03.2021 por sugestão do ex-aluno Hélio Sampaio. 



3 comentários:

gerson jara jor disse...

Entre estas lideranças forjadas no Cera lembro do saudoso Geraldo Garcia, um dos fundadores do PT e dirigente que conduziu Zeca do PT ao Governo do Estado

O caminho se faz ao caminhar disse...

No ano em que ingressei no curso de História da antiga FADAFI/FUCMT, em 1979, tive a honra de conhecer o Professor Paulo Corrêa de Oliveira, quando foi apresentar, durante as memoráveis "Recepções Culturais aos Calouros", a emblemática peça de sua autoria, sobre Santiago de Xerés.
Nessa mesma oportunidade os então dirigentes do DAFEZ (Diretório Acadêmico Félix Zavattaro), entidade representativa dos estudantes da FADAFI, nos acolheram e mostraram o outro lado da vida universitária: solidariedade, atividades culturais e grupos de estudo.
Não demorou muito para que os calouros de 1979 passassem a gerir o saudoso e riquíssimo Cineclube Universitário, com sessões todos os sábados à tarde. Foi desse modo, cheio de protagonismo, que nossa geração ingressou no movimento estudantil. Três anos depois, minimamente politizado, conhecemos dois baluartes da esquerda campo-grandense que se candidatavam para a Câmara Municipal: o engenheiro civil Fausto Matto Grosso e o advogado Marcelo Barbosa Martins, cujas campanhas não competiam, mas se somavam. Uma lição de cidadania...

Fausto Matto Grosso disse...

Hoje o Cera chama-se Centro De Educacao Profissional De Aquidauana Geraldo Afonso Garcia Ferreira