O COTIDIANO DEPOIS DO CORONAVIRUS
Normalmente contamos
os tempos, através do calendário. Os historiadores costuma usar outras escalas.
Consideram a ocorrência de fatos significativos de inflexão na trajetória da
vida da sociedade.
O historiador inglês
Eric Hobsbawm, por exemplo, considerava que “o curto” século XX, só começou em
1914 com a Primeira Guerra Mundial e o seu término ocorreu em 1991, como a
desintegração da União Soviética. Para a historiadora Lilia Schwarcz
(USP/Princenton) e outros especialistas faltava um símbolo mais forte para o
fim do século 20. E esse marco seria a pandemia do coronavírus.
Não que a ruptura
provenha diretamente da doença, mas trata-se do coroamento de um processo que
já vinha amadurecendo e que explodiu com a crise. É provável que quando tudo
voltar ao normal, o normal seja outro.
Uma nova cultura se
imporá, com revisão de crenças e valores. Consumir por consumir deverá sair de
moda; morar perto do trabalho ou trabalhar em casa deverá ser valorizado; a
cooperação em redes, em comunidades e entre vizinhos sairá fortalecida. Empresas serão mais cobradas quanto ao
cumprimento das suas responsabilidades sociais e a ciência será mais valorizada
em detrimento de crendices obscurantistas.
Profundas serão as
mudanças nas relações de trabalho. O desemprego em massa levará ainda à maior
precarização das relações entre patrões e empregados, com mais insegurança aos
que vivem do trabalho. A sociedade terá que bancar os custos sociais dessas
mudanças. Por isso, aumentou muito no mundo, a consciência sobre a necessidade
de programas de Renda Mínima Universal. A isso se agregará a necessidade de
fortes investimentos em educação, uma das principais formas de diminuição das
desigualdades sociais.
Viveremos uma
reconfiguração dos espaços de trabalho. O trabalho remoto ou em casa - home
office - que já é praticado por muitos,
inclusive em alguns casos, com desumana superexploração, se imporá
avassaladoramente para os profissionais liberais e empregados de empresas que
buscarão o aumento da produtividade desse o modelo. Novas regulamentações serão
necessárias para essas novas formas de contratação do trabalho.
Haverá também impactos
na estruturação das residências, onde se valorizará a existência de espaço para
o trabalho. Nos condomínios e edifícios, espaços compartilhados (coworking)
serão considerados imprescindíveis. Tudo valerá a pena, para as pessoas fugirem
do transporte caro e de longa distância, desconfortável e cansativo, poluidor
do ambiente.
Novos modelos de
negócios se imporão. Conviveremos com a ampliação das compras virtuais e com a
tele-entrega. Os ambientes presenciais de bares, restaurantes, cafeterias e
academias também deverão ser redesenhados para garantir maior afastamento entre
as pessoas.
O fim da epidemia
reforçará a discussão sobre as novas formas de aprendizagem, presencial e à
distância, e que demandará novas formulações pedagógicas, que tirem essas
decisões do âmbito dos interesses do ensino comercial. Ainda no plano da
educação, novas formas de socialização, deverão ser incrementadas, compatíveis
com a realidade da sociedade em rede.
A atividade cultural,
durante a pandemia, experimentou várias formas imersivas e deverá continuar
agora a fazer uso de novas plataformas e mídias para shows e espetáculos
online.
Muitas outras mudanças
deverão ocorrer nas diversas áreas da atividade humana. Muitas opiniões serão
quebradas e substituídas por novas concepções. Uma delas é que o Estado não
serve para nada. O SUS desmente isso e a construção da segurança estratégica de
insumos para a saúde será um novo desafio.
Após décadas de
supremacia do discurso liberal, está ocorrendo uma volta à razão. O mercado
serve para muita coisa, mas não consegue resolver desigualdade e insegurança
social. O fato é que até críticos do Estado, hoje não podem deixar de a ele
recorrer, para sobreviver. Hoje nenhum governo pode se dar ao luxo de ser
ultraliberal, principalmente em época de crise.
Fausto Matto Grosso
Engenheiro e professor aposentado da UFMS
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