INTOLERÂNCIA
"Na
primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as
flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o
mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e,
conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não
dissemos nada, já não podemos dizer nada." (Vladimir
Maiakovisk)
A
Câmara Municipal de Campo Grande viveu recentemente um episódio
patético, o enorme conflito relativo a um singelo projeto de
aprovação de um título de utilidade pública para a Associação
das Travestis de Mato Grosso do Sul. Fosse uma dessas entidades
fantasmas criadas, por alguns políticos, para receberem emendas
parlamentares, que eles mesmos elaboram, valeria a justa indignação
da cidadania.
O
episódio merece ser comentado pelo que tem de simbólico e de
emblemático de um comportamento de intolerância que surge quando se
mistura religião com política, o chamado fundamentalismo.
Todos
conhecemos o que isso significa de irracionalidade no Oriente Médio,
na Irlanda do Norte, no Paquistão e em outros cantos do mundo, ou
indo mais longe, o que significou a perseguição dos cristãos pelos
romanos e a Inquisição. Já pelo contrário vale lembrar o exemplo
do deputado comunista Jorge Amado que, na Constituinte de 45,
conseguiu aprovar a liberdade religiosa no Brasil, livrando da
perseguição policial a umbanda e o candomblé, ritos religiosos dos
negros pobres de então.
O
Brasil “cordial” tem que se alertar para o fato de que a
intolerância fundamentalista é um perigo sempre presente, que tem
se traduzido em veto à ciência, à diferença, à liberdade e ao
caráter laico do Estado.
A
democracia das maiorias foi uma vitória da civilização, o desafio
que se coloca agora é o da incorporação democrática das
diferenças. Reconhecer o outro para incorporá-lo no jogo
democrático e na organização da sociedade. Sociedades excludentes
são sociedades de conflitos. Grupos desorganizados, sem
interlocutores definidos, são massas de manobra para os navegadores
do caos social e da enganação política.
O
que os travestis fizeram foi exercer o legítimo direito de
organização, tal como qualquer outro segmento da sociedade. Não
precisaram pedir para ninguém, como acontece em uma sociedade
democrática. E no caso específico, a Associação passou a ser uma
interlocutora responsável e importante do poder público nas
questões de saúde, segurança, cidadania, entre outras. Agora
querem apenas que isso seja reconhecido, em uma lei, como ações de
utilidade pública. Só isso.
Inutilidade
pública é a intolerância. Perigoso é o fundamentalismo que um dia
pode nos pegar também.
Maria
Augusta Rahe Pereira,
médica
Fausto
Matto Grosso,
engenheiro
e professor da UFMS
faustomt@terra.com.br
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