TEMPOS INCERTOS
Outro dia, durante a madrugada, em uma pequena cidade do interior,
acordei com um barulho que já tinha perdido na memória: toda a
cachorrada da redondeza latindo em um coro desconexo. Sabe - se lá
qual deles começou, mas a babel estava formada.
Lembrei-me das discussões nas mídias sociais. Cada um com sua
suposta individualidade, sem compromisso, incapaz de construir
projetos compartilhados e transformadores. No dizer de Bauman
(Babel), uma multidão de "solitários interconectados". A
utilização das mídias sociais até já derrubou governos, mas não
foi suficiente para produzir mudanças sociais e políticas
profundas. O que serve para derrubar não serve necessariamente para
construir. Para isso continua precisando a política, uma boa e
renovada política.
Torna-se útil distinguir mídias sociais, de redes sociais, duas
coisas diferentes, muitas vezes tomadas como sinônimas. Mídias são
meras ferramentas tecnológicas, às quais devemos saudar. Redes
sociais são conexões de pessoas que compartilham informações ,
valores e objetivos sociais, ou sejam compartilham uma cultura e
podem, inclusive existir off line.
A atividade nas mídias sociais, marcada pela rapidez e
instantaneidade, sem maiores reflexões, alimenta correntes mas não
constroem reflexões e opiniões, não constroem cultura. São muitas
vezes o encadeamento de impressões vagas e irrefletidas que não
comprometem seu autores em ações. Dar uma curtida, não significa
nenhum compromisso. A postagem de hoje não será, necessariamente,
consistente com a postagem de amanha, a não ser nas seitas
políticas. É como se essas participações fluidas fossem correntes
descendo em um rio no meio das pedras, dentro da quais se perde a
visão do todo, acessível apenas a quem observa da margem.
Também a suposta autonomia individual na rede é discutível, em uma
realidade de fakes patrocinados e de instrumentos de busca de
informação, como o Google e o Wikipédia, entre outros, que nos
entregam a verdade pronta, acabada e indiscutível. Não precisamos
passar pela dor de pensar. Essa é, na maioria dos casos, a autonomia
intelectual cultuada.
No dizer de Bobbio, cultura significa medida, ponderação,
circunspeção: avaliar todos os argumentos antes de se pronunciar,
controlar todos os testemunhos antes de decidir.
Para que esse ativismo digital, se transforme em cultura e opinião
política, tem que juntar a autonomia com a responsabilidade do
indivíduo, tem que conviver com as dúvidas mais do que disseminar
certezas, submetendo-se ao escrutínio da razão.
Qualquer avanço tecnológico desde os paus e pedras do homem
primitivo, passando pelo arado, pela máquina a vapor, pela automação
ou pela uso das ferramentas de informações e conhecimento, marca o
conjunto das relações humanas. A cada avanço corresponde o elenco
das ideias e valores, das instituições e organizações, da ética
e da estética, da moral e dos costumes, enfim somos a cultura do
nosso tempo.
O desabamento das ideologias estruturadas, onde se confrontavam os
valores da esquerda e da direita, segundo alguns, representou o fim
da história. O mundo atual seria definitivo. Estaríamos submetidos
a essa cultura marcada pelas diferenças sociais, pela fragmentação,
pelo individualismo, pelo hedonismo e pelo consumismo.
Bauman ao contrário, afirma que estaríamos, sim, vivendo um novo
momento de transição. Se Marx, descrevendo processos anteriores,
afirmava que "tudo que era sólido se desmanchava no ar",
esse autor chama a atenção para a realidade dessa "sociedade
líquida" que se ajusta a cada caso e circunstancia, onde tudo é
provisório e caótico, onde não existem verdades e sim narrativas
diversas, igualmente válidas.
Para ele, essa "cultura" não afirma e não pode servir de
base para nenhum avanço civilizatório. Viveríamos sim um
"interregno", até que atingíssemos um novo estágio com
novas instituições. A grande questão seria qual o tempo e o preço
humano a pagar enquanto durasse essa transição.
Fausto
Matto Grosso
Engenheiro
Civil, professor aposentado da UFMS
26.02.2017
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