ENTREVISTA
‘É necessário construir novas regras, nova ética, novas relações, nova governança’
Para
Fausto Matto Grosso, a sociedade política se afastou enormemente da
sociedade civil, que deveria ser a fonte da sua representatividade
5
JUN 2016
Por
CRISTINA MEDEIROS
Diante
da indiscutível crise que o mundo ocidental vivencia na efetivação
de uma (real) democracia representativa, quais medidas sociais,
políticas e jurídicas podem ser implementadas com o objetivo de que
a desejada confiança do povo seja alcançada, uma nova governança
seja criada e a parceria entre governo e sociedade se estabeleça?
Estas e outras questões fazem parte das reflexões de um grupo de
pessoas em Campo Grande, que formou o Movimento por uma Cidade
Democrática. Dele faz parte o professor aposentado e engenheiro
civil Fausto Matto Grosso, que nesta entrevista ao Correio do Estado
fala, entre outras coisas, da necessidade de refundação da política
em novas bases, de maneira a que se recupere a confiança social.
CORREIO
PERGUNTA
O
senhor faz parte de uma plataforma nacional intitulada Cidade
Governança Democrática. Poderia explicar de que se trata e por que
sua adesão?
Francisco
Fausto Matto Grosso Pereira - Na atualidade, há uma grave crise na
maneira de fazer política e de fazer governo. Os políticos, os
partidos e os governantes estão profundamente desacreditados. Há
uma profunda crise de representação. A sociedade política se
afastou enormemente da sociedade civil, que deveria ser a fonte da
sua representatividade. Há que se reconstruir essa relação da
política com a sociedade, fazer a política e os governos cumprirem
suas finalidades públicas, pautarem-se por princípios cívicos e
republicanos, comporem-se de quadros representativos e capazes, serem
transparentes e confiáveis, para que se recupere a confiança
social, base para a necessária parceria entre governo e sociedade.
Essa é a ideia central, é necessário construir novas regras, nova
ética, novas relações, em outras palavras, nova governança.
Essa
nova governança, democrática por sua natureza, representaria a
refundação da política em novas bases, de maneira a que se
recupere a confiança social. Esta é a resposta para a crise que
vivemos, é a única possibilidade de se criar a sinergia necessária,
entre todas as forças vivas da sociedade, para enfrentar os enormes
desafios existentes nas cidades. É nisso que acredito, por isso
estou empenhado na construção coletiva dessa nova política.
O
senhor e um grupo de pessoas criaram o “Movimento por uma cidade
democrática”, que se propõe desenvolver ações contra a
degradação política em Campo Grande. Quem são estas pessoas e
quais as principais propostas de vocês para que Campo Grande se
torne uma cidade melhor?
Somos
um grupo de pessoas, formadoras de opinião, com certa experiência
de militância política, na boa política, que já exerceram
mandatos ou funções públicas, das mais diversas filiações
partidárias, ou mesmo sem nenhuma vinculação a partidos, que se
reúne para entender as razões mais profundas da crise ética que
tem marcado a nossa política e articular ações concretas de
denúncia e, ao mesmo tempo, apontar saídas para a superação da
velha política. São pessoas das mais variadas formações
profissionais, que produzem artigos de opinião publicados em vários
jornais, que se pronunciam em entrevistas de rádio e nas mídias
sociais, que proferem palestras, sempre defendendo a política como
atividade imprescindível na democracia, mas que se encontra
profundamente degradada. Nossa proposta é de provocar a sociedade
para o desafio de mudar a política a partir de uma visão
sócio-centrada e não estado-centrada, ou seja, de subordinar a
política e os governos à sociedade e não ter a sociedade tutelada
pelos governos e pela política.
Esta
degradação política a que o senhor se refere é algo detectado a
partir de que?
É
só abrir os jornais ou ouvir os noticiários para perceber esse
apodrecimento da política tradicional. Ela perdeu referências
programáticas e ideológicas, se transformou em negócios privados
escabrosos. Os assuntos da política passaram a ser assuntos típicos
de páginas policiais. É um descalabro. Mas, felizmente, estas
coisas começam a aparecer, a serem trazidas à luz do dia, e
saúda-se a Operação Lava Jato, a Lama Asfáltica e a Coffee Break
que estão dando nome aos bois, inaugurando um novo clima de
esperança de que a lei valha para todos e, ninguém, por mais
poderoso que seja, pode ficar acima dela. Isso nunca vimos acontecer
antes.
Qual
a posição do grupo em relação a acontecimentos como a Lei da
Mordaça e a Operação Coffee Break?
Nosso
grupo é um ponto de encontro para reflexão e organização de
ações. Nossa contribuição mais específica, pelas características
da nossa composição, é a de pensar os problemas para além de suas
manifestações aparentes, buscando as raízes mais profundas,
normalmente ocultas. Nesses temas que você cita, posicionamo-nos em
artigos, entrevistas e estivemos presentes em manifestações
públicas em caráter coletivo ou individual e sempre procurando
somar com outras iniciativas existentes na sociedade. No caso da Lei
da Mordaça, por exemplo, elaboramos um manifesto pelo veto da lei,
envolvendo centenas de pessoas, fomos ao Prefeito pedir o veto, fomos
à Câmara pedir a manutenção do veto ao projeto, articulamo-nos
com outras instituições, a exemplo da OAB, que nos convidou para
contraditar com os propositores dessa malfadada lei na reunião do
seu Conselho. Tudo isso somado a palestras, entrevistas, debates onde
tivemos presença ativa.
Podemos
dizer que o atual papel político na transformação da cidade de
Campo Grande – e das cidades em geral – está equivocado num
tempo de evolução tecnológica e redes sociais?
Sem
dúvida. O mundo mudou profundamente e quem continuar pensado com a
cabeça formada nos contextos que foram superados, morreu
intelectualmente, embora muitos não percebam isso. A cidadania hoje
interage horizontalmente nas redes de informações e comunicações
e não se sente representada nas estruturas verticalizadas, articula
ações participativas que colocam em xeque o sistema tradicional de
poder. Ninguém mais precisa de intermediação para cobrar,
criticar, propor coisas diferentes e inclusive, tem criado redes de
cooperação para resolver problemas. O nível de participação
aumentou muito, nunca se discutiu tanta política, e nessa
efervescência está a energia para o surgimento de uma nova
política, para esse mundo novo que vai se afirmando.
O
senhor concorda que para se conseguir maior participação na vida
política e pública da cidade é necessário que o cidadão sinta-se
pertencente àquela cidade? O que fazer?
Isso
é absolutamente verdadeiro. Mas, afinal, o que é a cidade, genérica
e abstratamente? É aquilo que está na cabeça do prefeito, ou do
governador, ou de cada vereador ou dos candidatos das próximas
eleições?
Esse
sentimento de pertencimento só poderá ser verdadeiro se a cidadania
fizer parte da definição do que se pretende para a cidade, ou seja,
da construção de um projeto de futuro compartilhado por todos. Aí
sim, cada um pode vir a assumir uma postura de cumplicidade, de
corresponsabilidade com essa construção coletiva, saber qual é o
espaço do seu interesse legítimo e qual o papel que pode cumprir.
Como
a sociedade civil pode colaborar na transformação real de sua
cidade?
Nós
estaremos vivendo este ano uma boa oportunidade para essa
intervenção, por conta do processo eleitoral. A sociedade civil
pode atuar melhorando a qualidade da representação política,
convocando quadros para essa missão, repudiando os políticos que
representam apenas seus próprios interesse e projetos pessoais.
Outro desafio é o de fortalecer a articulação das diversas
instituições existentes para uma interlocução organizada com os
futuros candidatos, cobrando-lhes compromissos de novas relações
entre a futura administração e a sociedade, cobrando-lhes programas
de governo consistentes, comprometendo-os com a elaboração de
planos de longo prazo compartilhados com a sociedade, cobrando-lhes
fichas limpas, transparência, qualidade de gestão e posturas
republicanas.
Como
seria o modelo ideal de gestão pública?
Se
é certa a constatação de que forma tradicional de governar está
em crise, que a administração pública perdeu a sua capacidade de
financiamento, que os problemas se avolumam diante de um estado que
já bateu no teto da capacidade contributiva da sociedade através
dos impostos, que as necessidades são crescentes e evoluem em um
ritmo maior do que permite o crescimento da economia, não é trivial
apontar um modelo milagroso para a saída do impasse. O novo não tem
receita pronta e acabada. O fato é que não basta ser bom gerente,
ou honesto, para dar conta dos desafios das novas administrações.
Isso é pouco. Há necessidade de inovação na maneira de governar.
Hoje,
o modelito que norteia a disputa política é de quem é o mais
competente para fazer a gestão de infraestrutura e serviços, quem é
capaz de conseguir mais recursos para atender as necessidades da
população, mas o governante é o árbitro dessas necessidades. A
população é tratada como clientela, e o governante é o gerente,
trazendo para a administração pública o modelo da gestão privada.
A
grande questão é que não há competência que dê conta da crise
estrutural e conjuntural de financiamento da máquina pública. Os
números são contundentes quando se analisa o gap entre os recursos
e as necessidades. É fora de dúvida que qualquer governo tem que
ser honesto e ter competência gerencial. Mas isso não é
suficiente. A realidade é que não é o governo, a prefeitura que
constrói a cidade, ela é fruto da atividade produtiva, social,
cultural e política dos cidadãos. O grande desafio é criar a
sinergia entre todas as energias e recursos existentes na sociedade -
econômicos, de conhecimento, de experiência de organização, de
articulação social, de trabalho voluntário, entre outros. Essa é
a função mais desafiadora a ser exercida pelo administrador
público, ou seja, a da articulação da sociedade. Isso significa
construir uma nova relação entre governo e sociedade, focada no que
deve ser a razão da ação pública: o desenvolvimento humano, o que
contempla equidade social, eficiência econômica, sustentabilidade
ambiente e convivência democrática.
A
gestão descentralizada, aplicada em importantes cidades pelo mundo,
é o melhor caminho, mesmo num país como o Brasil, onde em muitas
cidades é a lei do mais forte que ainda manda?
A
descentralização é uma regra de ouro para a gestão pública, mas
tem que ser combinada com a articulação e a integração formando
um sistema coerente. Tecnicamente tem que se repensar esses conceitos
e seus mecanismos no contexto da sociedade em rede. Cada escola, cada
unidade de saúde, cada local de atendimento das pessoas, cada ponto
de ônibus pode ser pensado como nó da rede integrada, onde o
cidadão possa falar direto, em tempo real, com a administração
pública. Quanto à lei do mais forte, não se pode ser ingênuo, ela
é a regra cruel do sistema atual, mas pode ser enfrentada. O caminho
é o da política, da boa política de juntar forças interessadas
nas mudanças, o de criar uma força social mais coesa e democrática
que possa enfrentar a lei do mais forte.
PERFIL
FRANCISCO
FAUSTO MATTO GROSSO PEREIRA,
Engenheiro
Civil pela UFPR, Mestre em Desenvolvimento Local pela UCDB, professor
titular da UFMS, aposentado. Foi vereador em Campo Grande pelo PCB,
hoje PPS, entre 1983 e 1988. Foi Secretário de Planejamento do
Governo de Mato Grosso do Sul, Diretor de Desenvolvimento Regional da
Secretaria de Desenvolvimento do Centro Oeste/Ministério da
Integração Nacional. Atualmente é pesquisador associado do Grupo
de Estudo das Transformações Organizacionais – GETO/UFMS e
consultor em planejamento e desenvolvimento regional.
É
membro da Direção Nacional do PPS e da Diretoria Executiva da
Fundação Astrojildo Pereira
Nascido
em 02 de janeiro de 1949
Nenhum comentário:
Postar um comentário