A CLASSE DOMINANTE NA UNIÃO SOVIÉTICA
Marisa Bittar
Em 1981, depois de
cinco anos do meu ingresso no PCB, tive o privilégio de receber a missão para
estudar na União Soviética. Pelo fato de eu ser uma das responsáveis pela
educação dos militantes secundaristas, fui selecionada para a primeira turma
que seria enviada para lá depois dos “anos de chumbo”.
O esquema de segurança
montado pelos soviéticos para sairmos do Brasil e chegarmos a Moscou foi algo
que até então eu só conhecia em filmes. O fato é que, depois de um intrincado e
bem bolado plano, desembarcamos na “pátria do socialismo”. No grupo iam mais
dois camaradas de Campo Grande, mas durante todos os voos ficamos separados uns
dos outros. A emoção que senti quando pisei aquele solo foi indescritível, mas
a rápida sequência de acontecimentos nos momentos seguintes exigiu atitudes
práticas. Ainda dentro do aeroporto, fomos levados a uma sala na qual havia
outros brasileiros e, lá, dois membros da KGB recolheram nossos documentos e
nos instruíram a escolher nomes falsos a fim de sairmos dali com uma identidade
russa com a qual iríamos viver. Do aeroporto, fomos levados a uma “dasha”, isto
é, casa de campo, onde passaríamos as primeiras semanas. Exames médicos e aulas
de russo ocuparam o nosso tempo naquele lindo lugar.
Finalmente chegou o
dia de irmos para o Instituto de Ciências Sociais, em Moscou, onde moraríamos e
estudaríamos. Para minha surpresa, eu, que era a única mulher entre os
brasileiros, fui designada a ser chefe do coletivo e, por isso, as minhas
responsabilidades seriam maiores.
A chegada ao Instituto
foi de grande euforia e emoção. Deparamo-nos com um prédio imponente e uma
pracinha na frente. No hall, havia um busto de Lênin e no pátio interno que
dava acesso às moradias, um de Marx. Depois de instalados, fomos chamados a um
encontro com o Diretor no prédio central. Juntamente com o nosso “pirivôtchi”
(tradutor), lá fomos nós. Sentados à frente da principal autoridade do
Instituto, ouvíamos as suas informações sobre o funcionamento de tudo ali e as
suas rígidas recomendações sobre o nosso desempenho, isto é, sobre o que
esperavam de nós. A tudo respondíamos que sim, claro, que estava tudo certo,
que faríamos o melhor possível e, de vez em quando, arriscávamos até uma
palavrinha em russo para impressioná-lo. A essa altura, nosso tradutor, já
ciente de uma certa malandragem associada a brasileiros, achava graça da nossa
exibição linguística.
Após concordarmos com
tudo o que o Diretor nos determinava e certos de estarmos fazendo uma boa
figura, ele, de repente, nos perguntou assim: “Vocês, é claro, ouviram falar
muito em seu país, dentre as difamações anticomunistas, que aqui na União
Soviética, existe uma classe dominante”. Ficamos desconcertados. Classe
dominante no socialismo?! “Não, senhor”, alguém de nós respondeu demonstrando
convicção. E ele: “Vocês devem ser sinceros, sabemos que ouviram”. “Bem,
algumas vezes ouvimos, mas bem poucas”. Novamente, ele nos arguiu: “Poucas? Não
é possível, sabemos que foram muitas. Os anticomunistas têm preferência por
dizer que aqui existe uma classe dominante”. Nós nos entreolhamos desorientados
e então, como eu deveria ter maior responsabilidade sobre o meu coletivo,
resolvi dizer: “Realmente, no Brasil falam isso, mas é que lá falam muita coisa
sem saber, falam por falar”. Com isso, achei que a situação estava salva, mas
ele me encarou e disse: “Pois eles estão certos. Aqui existe, sim, uma classe
dominante”. Ficamos pasmos. Como seria possível o próprio Diretor admitir que
existia a tal “nomenclatura”, isto é, os privilegiados do sistema? Ele
insistiu: “Vocês sabem quem é a classe dominante daqui? Aquela para quem toda a
sociedade se desdobra para dar o melhor de si?”. Boquiabertos, nenhum de nós se
arriscou a dizer mais nada, pois já estávamos afundados em nossa tentativa de
mentir e incrédulos com aquela verdade. O Diretor, então, do alto de sua
autoridade, nos comunicou: “A classe dominante da União Soviética são as
crianças. Mesmo na tragédia da Guerra, fizemos tudo o que estava ao nosso
alcance para nunca lhes faltar o alimento, o uniforme escolar, os cuidados de
toda a sociedade, pois elas são o futuro do socialismo”.
Marisa Bittar
2 comentários:
Parabéns Marisa!Conhecer um pouco mais de sua história e o processo de conhecer na União Soviética é muito bom! Abraços
😜😜😜😜parabéns. Bonita passagem.
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